20060916

Loch doce loch

Voltei!!! Maravilhada, absturdida, translumbrantemente satisfeita!!! Dei com o caminho de regresso... e caminhei pensando que quase tudo se resume a um abalo semântico. Sismozinho de palavras, ideias e intenções. A falta que os glossários fazem...

Estive a ler Adília Lopes. E parte de uma entrevista dada pela Adília Lopes. E textos de várias pessoas sobre a escrita da Adília Lopes. Podia-me ter dado para ler outra coisa. Mas não. Aterrei mesmo na Adília, quase sem querer e gostei que ela gostasse de ler Adélia Prado. E também gostei que ela se dispusesse a ler Clarice Lispector. Depois, mesmo sem gostar, fui até à cozinha lavar a loiça ‘trasnochada’ do jantar de ontem. Claro que estava de ressaca (a loiça) ou de resseca, espojada no lava-loiças como a minha gata no mosaico da varanda. E entre pratos e frigideiras, copos e talheres, acordados pelas belas espumas do detergente, entremeei pensamentos de Adílias, Adélias e Clarices e dei comigo a perguntar-me porque não saio também eu da resseca, à conta do alegre detergente da minha alucinação? A receita parece ter provado. Nem digo isso à conta do reconhecimento ou do sucesso público de umas e de outras protagonistas do método. A receita parece ter provado, porque as três devem ter ficado supinamente aliviadas dos seus lutos ao exorcizarem, assim, nem sei se os seus roupeiros se os seus esqueletos.

Como já estou naquela idade em que é maior o passado do que a possibilidade de futuro e já consegui somar a uma série de actividades muito dignas (daquelas que, quanto mais não seja, dão lustro ao forro dos bolsos e - valha-nos isso! - ao pundonor) algumas outras, que não dão lustro a nada mas funcionam como sinalética pessoal (pelo menos fiquei a saber que passei por ali), há luxos que começo a consentir-me. Podem ser luxos de consciência e podem ser luxos de inconsequência. Ao gosto. A Adília tem 46 anos, a Clarice partiu aos 57 e a Adélia está com 71. Pelo menos acertei na faixa etária. O que é que isso quer dizer? - Nada de especial, se for preciso explicar o sorrisinho sardónico.

"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..." - Clarice Lispector

Mas antes de aterrar na Adília Lopes, parei numa estação fotográfica do Manuel Luís Cochofel a que ele deu por nome A Quinta Angústia, com base no nome de uma Irmandade/Confraria fotografada durante uma procissão de Semana Santa em Sevilha. E fiquei roída de inveja. Primeiro, porque Adílias, Adélias e Clarices já processionaram, a coberto dos capuzes dos seus escritos, uma bela parte das suas angústias quintessenciais (mesmo que a dita Quinta ainda não tenha percorrido o itinerário todo - isso a gente não sabe). Segundo, porque no estado em que as coisas andam, e mesmo que não leve andor como é bom de ver, corro o enorme risco de nem eu própria perceber que a procissão já começou. Brrrrrr... nova réplica de abalo semântico!

A verdade é que entre sismos, a loiça 'trasnochada' ficou estendida no espaldar (se fosse a Adília, não perdia a oportunidade de chamar-lhe chaise-longue, pois então!) até inciar, tmbém ela, a dua procissão pelas capelinhas dos armários, pelo adro da mesa da casa de jantar, pelas fogueiras a gás natural que a guardiã dos lares, num momento de decrépito sentido de sagrado, alumiará daqui a umas horas. Mas que sossegue a Adélia, que não vou escamar peixe nem tenho marido dado a pescarias. Aqui vai ser mais arroz de carne malandrinho, que é como quem diz, fazer render o peixe e milagrar dois bifes num jantar para três. E se houver quem leia, perguntará "E quê?" ao que eu responderei 'E nada!' e, quando chegar a hora, vamos todos jantar, eu, os meus e quem possa ler, cada um dando azo às procissões que muito bem entender, mesmo sem estar afecto a nenhuma paróquia. Digam lá se não é gostosa tamanha liberdade?

A Adília gosta de gatos e de falar de baratas. Eu gosto de gatos e de coisas baratas, mesmo que não goste de falar delas, que, mesmo baratas, saem-me ostensivamente da carteira. Das outras, substantivas criaturas aladas ou não, S, M, L, XL ou XXL, fujo a sete pés, combato a sete insecticidas, mudo de casa, ponto. Só nutri simpatia por 'uma', a que ternamente tratei por 'Adelaidinha' - a ela e a cada manifestação sua - que peregrinava, motivada sabe-se lá por que insidiosa curiosidade intelectual ou por que demanda da sua própria angústia, a parede de um 'pub' que frequentei meia dúzia de vezes há uns bons pares de anos. Claro que nessa altura, mesmo sem eu o perceber, já alimentava em mim este respeito por peregrinos e demandadores.
No entanto, enquanto que com a Adília, a Adélia e a Clarice, quem quer que as leia pode prever, percepcionar, pressentir ou perceber a peregrinação (ai que me lembro do Nabukov!!!), no meu caso, arrisco-me a imensas provações (há as telenovelas, as 'stand-up comedies', os telejornais...)

Mas pronto - os abalos semânticos acabam sempre por trocar as coisas e, neste momento que vou para obras, já nem sei se vou mandar imprimir um outdoor em letras garrafais a dizer 'sou livre, processiono' ou se vou colar cartazes nas paredes do IST da Alameda a dizerem 'sou livre, angustio-me'. Que me desculpem as almas sensíveis, mas tenho ainda uma terceira tentação, que é a de um grafitti a dizer ' sou livre, sou um aborto', mas isso hoje em dia seria algo tão disparatado como pôr à porta da Gulbenkian um placard a dizer 'proibido comer as estátuas' - para além de me ficar o amargo de boca de ser injusta com a minha mãezinha que ainda hoje jura a pés juntos que teve de me suportar como víscera nove meses inteirinhos 'con todas sus noches' (Y que Dios te bendiga, Gabo!)

A hora do jantar aproxima-se. Fujo ao dilema da Clarice e nem ovo nem galinha que o jantar vai ser mesmo o tal arroz de carne 'malandrinho'.