20070608

Uma pitada de sossego

Pode chamar-se corda, ainda que nestes cansaços de fim de tarde eu prefira chamar-lhe trança. Gosto dos filamentos que se escapam, como a quererem chegar mais longe, gosto dos fios que se fortalecem, gosto da cor, da multidão de tonalidades que se acotovelam sob a incidência da luz, gosto do seu ar de repouso que não lhe retira a sensação de robustez, de resistência, de utilidade, gosto da ideia de barco e da percepção da maresia. Gosto do ar de Verão que alonga os dias e de rever o loch, ao fim de tanto tempo, entrançada que ando em tanta coisa. Estendo-me na margem, fecho os ouvidos aos ruídos de longe para ouvir só estes silêncios tão cheinhos de som e fico a aspirar este sol manso nestes momentos de sossego... Loch é loch! :) E sim, obrigado M pela foto! ;)

20070517

Até breve, Graça. Até loch!...

A Graça ontem saiu, para descansar.
Atravessei a rua que é o espaço que separa a minha casa da casa provisória onde ela veio passar a noite de hoje.
Despeço-me com um 'até breve' de uma Grande Mulher. Quase anónima, mas invulgarmente Grande.
O afecto fica guardado, regado com carinho e cuidados, como uma flor, no coração.
A memória guarda com igual atenção o imenso privilégio de a ter conhecido.

Graça: Até na despedida, fizeste as coisas à tua maneira, Senhora de uma Sabedoria que te estava nas veias, porque te vinha da alma.
Boa viagem, Graça. Até breve :) Creio que os teus ficam bem, que também conseguiste velar por isso... A Bênção para ti, minha Amiga.

Até loch...

20070508

e a alma rasga-se num parto renovado... São amanhãs gémeos de esperança a brotar, efervescentes, de uma memória fértil de passado... óvulos de futuro? arcas de passado? células de presente a atezanar-nos os dias, benquistas âncoras...
Até loch.... :)

20070501

Mí na Bealtaine

El Jardin del Unicornio, Ana Maria Jaramillo

Feliz Dia de Maio :) Até loch.

20070430

Cometi uma imprudência. Fatal, é certo. Reli coisas que escrevi há muito tempo aqui no loch. «Desde que me lembro de ter noção de mim que tenho uma atracção muito própria para aquilo a que, desde há algum tempo, chamo de 'horas apócrifas'. Claro que não incorro na tentação costumeira de atribuir ao adjectivo nada além do que significa, isto é, algo cuja autenticidade não está comprovada, pressupondo, obviamente, que a autenticidade também tem muito que se lhe diga e que pode referir-se a vários patamares - autoria, rigor de conteúdo, etc. Mas sendo a hora apócrifa, não me apetece ir por aí. Apetece-me ir por onde as horas apócrifas me levam - ao sabor de ecos em mim. Ah... e convirá, talvez (quiçá! :)) dizer que para mim são apócrifas as horas que não precisam de códigos de barras, de legendas, de livrinho de instruções, de manual operacional e - muito menos, benza-as Deus! - de planeamentos quinquenais, trienais nem anuais, porque podem dar-se ao luxo de ser à solta, como bons selvagens (lollllllllll - não, também não quero ir por aí, que me parece atalho, e eu nestas horas nem quero asfaltos, nem britas, nem desenhos quanto mais mapas!). Poderei dizer, quase com candura ('quase'), que as horas apócrifas são a forma de medir um certo tempo no loch. Como ontem comentava tão especialmente bem o Dragão no Dragoscópio, são horas em que sabemos que estamos a ser escritos pela pena da morte e em que em nós acorda um talento para ler nas entrelinhas. Que engraçado... isto poderia ser dito de tantas e tão variadas formas... ;) No outro dia , o Incognit thing escrevia os tons das rotinas e das angústias (Entre um café e um pastel de nata) com pinceladas argutas, ainda que (im)próprias da sua juventude, e lembrou-me os passeios que eu costumava fazer, em anos semelhantes e em horas igualmente apócrifas pela espuma da bica que arrefecia diante do meu nariz, sem outro alucinogénio que a minha própria alucinada lucidez. O carlos a.a. deixou-me ontem um comentário à sua maneira e eu comovi-me à minha maneira e senti-me tão velha e tão pequenina. Tão T-Regina e tão mínima. A bizantina fala-me do seu budista e da luta que trava para ser a senhora da sua paz e eu comovo-me pelo épico que tem a sua luta desarmada e pela sua conquista antecipada e certa. Comovo-me. Movo-me com. Por isso gosto de perfumes, de essências que, fluidamente, numa ambiguidade que é só sua, nos invadem. São o estandarte das horas apócrifas onde se diz o que não se diz, onde se criam as mais improváveis pontes e onde todos os astros estão à distãncia de um pensamento. A dor de uma ausência a que se chama saudade transmuta-se na flor que desabrocha no nosso colo e, assim, sem ninguém dar conta nem explicar, torna-se na origem do nosso próprio nome, sem que o pudessemos ter pressentido, quanto mais adivinhado. Círculos... ciclos... espirais doidas que não racionalizamos sem antes reinventar um sete ou entender os porquês dos côvados. Lá vem a chuva oblíqua... Dedilha na janela como um mantra. O fumo do cigarro parece a batuta dessa tão improvável sinfonia. Na universalidade do som, um Ré (Rah) Maior explode as essenciais declinações de todos os mitos. Mas também não quero ir por aí. A hora é apócrifa e sem atilhos. O voo será sempre mais subtil do que a asa. O loch, apesar de tudo, será sempre mais subtil do que o lago. Por isso mesmo, por isso agora, até loch...»
Tudo me dói. Até a memória......
Até loch se loch houver......

20070413

Janela

Foto: M. Teixeira
Frondosas, as margens recurvavam-se como que em abraço pela paisagem. O rio, nas sombras taciturno, desfranzia-se pela luz ao sol-nascente. Os pássaros, em bandos, revoavam, desciam, subiam de repente, na falsa inquietação da alegria. Era azul e era verde em feira franca. Mais perto, o burburinho saltitante dos pardais, os pombos em arrulhos pela calçada, as varandas transformadas em beirais. Despedindo-se, o frio da madrugada, deixava um rasto de água e uma aragem. Nos prédios, os raios incidentes criavam estrelas refulgindo nos metais e, nas ruas, acordavam os rumores do dia-a-dia. A minha janela tornara-se viagem... e lavada já da noite, eu renascia.

Até loch :)

20070401

Cante Hondo

Foto: M.Teixeira

Eu meditava, absorto, enrolando
os fios do fastio e a tristeza,
quando chegou aos meus ouvidos
pela janela do meu recanto, aberta
a uma abafada noite de verão,
o planger de uma trova sonolenta
quebrada pelos tremores sombrios
dos magos soares da minha terra
... E era o Amor, como uma chama rubra...
- nervosa mão a uma vibrante corda
cedia um longo suspirar de ouro,
que se tornava em nascente de estrelas -.
... E era a Morte, de cutelo ao ombro,
de passo longo, turva e esquelética,
como, quando menino, eu a sonhava
E na guitarra, exuberante e trémula,
A brusca mão, ao fustigar, fingia
O repousar de um ataúde em terra.
E era um plangido solitário o sopro
Que a poeira varre e a cinza acalenta.

Antonio Machado
trad. Margarida Santiago

20070329

Lenga-lenga-lenga-lenga

Mais me parece que malho,
sem cansar, em ferro frio.
Às vezes não há trabalho
noutras é de arrepio
Mas a gente até se alegra
a julgar que se vão ver

os frutos em ‘contra-entrega’
e que desta é p’ra valer
que houve ‘gentleman’s agreement’
sorriso, aperto de mão...
mas o ‘marvellous achievement’
(são eles que o dizem, eu não!),
só terá seu pagamento
quando não sei que entidade
aprovar o provimento...
depois a contabilidade
mediante a minha factura
confirma no orçamento,
item, norma, assinatura
para poder dar andamento.
Agora é só preencher
O cheque que me vão pagar
“Hoje devem aparecer
os dois que vão assinar”,
responde-me ao telefone
a nova interlocutora
de quem não sei nem o nome,
quando reclamo a demora.
Mais de um mês já é passado
desde o pedido, de urgência,
que eu cumpri pelo meu lado.
Mas do deles... só flatulência.
Ao fim de outra semana,
lá volto a telefonar...
E oiço, incrédula, insana:
“Estão os dois a viajar...
Lamento, compreendo bem...
Sim, sim, tem toda a razão...
Mas para a semana que vem
Certamente, já cá estão!”
Dois meses já são passados
E é tarde de sexta-feira
E o cheque, daqueles traçados
Entra-me enfim na carteira.
‘Falta agora esperar -
- penso eu c’os meus botões -
- ‘que os outros que hão-de pagar
dêem menos confusões...’
Mas na segunda é feriado...
Frigorífico vazio...
No Banco conta a dobrado...
Não paguei ao senhorio...
(Eu vejo-os por todo o lado,
ostentando o seu bem-estar!...)
Dói-me trabalhar fiado
E ‘inda por cima pagar!

Até loch!

A propósito de Poesia...

Mucha, Poesia
Emily Dickinson - Trad. de Jorge de Sena

Morri pela Beleza - mas mal eu
Na tumba me acomodara,
Um que pela Verdade então morrera
A meu lado se deitava.
De manso perguntou por quem tombara ...
-Pela Beleza - disse eu.
- A mim foi a Verdade. É a mesma Coisa.
Somos Irmãos - respondeu.
E quais na Noite os que se encontram falam -
De Quarto a Quarto a gente conversou -
Até que o Musgo veio aos nossos lábios -
E os nossos nomes - tapou.

Até Loch :)

20070317

Entre o sonho e o real

Sagrada Familia, Gaudi, Barcelona
O cárcere profundo e de pedra; a sua forma, a de um hemisfério quase perfeito, embora o pavimento (também de pedra) seja algo menor do que um círculo máximo, o que, de algum modo, agrava os sentimentos de opressão e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de altíssimo, não toca a parte superior da abóbada; de um lado estou eu, Tzinacan, mago da pirâmide Qaholom, que Pedro de Alvadaro incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Ao nível do chão, uma ampla janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia), abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que os anos foram apagando manobra uma roldana de ferro, e baixa, na ponta de um cordel, cântaros de água e pedaços de carne.

A luz entra na abóbada; neste instante posso ver o jaguar.

A Escrita de Deus, Jorge Luís Borges

20070314

Anúncios de Primavera

Monet, Jardim em Giverny
Neste dia de Primavera anunciada, claro que me lembro da última paisagem que vi na cidade invisível e que me pergunto por que cidades andará caminhando a bizantina... E hoje apeteceu-me especialmente voltar a passear-me pelo jardim de Monet, na tentativa de me oferecer cenário afável à alma, regalada como anda nas volutas floridas de Rumi:

A Primavera dos Amantes chega,
para que este canteiro de pó se torne num jardim;
a proclamação dos céus chega,
para que a ave da alma se possa erguer em voo.
O mar enche-se de pérolas,
o salgueiro torna-se doce como cana,
a pedra transforma-se em precioso rubi,
o corpo torna-se plenamente alma.

Até loch...

20070312

Um dedilhar. Uma corda de guitarra trémula como uma corda de vida ou como uma corda bamba que o vento faz vibrar, assim, sem aviso.... um fremir de som...



Um cacho de amoras num silvado. Um sopro. Um sopro... Até loch!

20070310

Pele de papel pardo

Há qualquer coisa que incomoda. Não, não é só cansaço. Não são só as dores no ossos, a neurodermite, a taquicardia. Há qualquer coisa que incomoda. Ume espécie de pele que não devia estar onde está e se sente opressiva, asfixiante, cheia de poder, apesar da ausência de direito natural do seu surgimento. Uma espécie de redoma criada do exterior, em material tosco, primário e, queira Deus, tão efémero quanto a consciência da sua momentânea existência. Mas incomoda como um sapato que aperta, como uma luva grosseira que inibe a sensação e até o gesto. Interessa-me fazer de conta que consigo despi-la assim, com a mesma indiferença com que se tira uma pulseira que começa a pesar no pulso. Não é, no entanto, assim tão fácil. Ligo a televisão com a displicência das rotinas. O canal é o tal dito público e apanho nos ouvidos com uma coisa que não consigo entender. É natural. Vai havendo cada vez mais coisas que não consigo entender e dá-me uma pena infinda a pobre, a miserável ficção que oiço e que, em relances, vejo. Parece um pesadelo de casebre. Como quase tudo o mais. Não é mais do que uma pele de papel pardo e, no entanto, está aqui. Ninguém me mandou ficar com um pé na terra e outro no loch... erro meu!

Sábados e alcofas brancas

Foto: http://alifeinwales.typepad.com/photos/uncategorized/white_flowers.jpg
Sábados em que apetece muito despir o cansaço todo, fazer do mundo uma enorme alcofa de algodão, receber flores em tudo, em tudo mesmo, para poder rebolar a alma em pétalas e pétalas e pétalas - qualquer coisa como pairar inteira num abraço de anjo... que pensamento bom... :)
...deve ser a Primavera que começa a sorrir! Até loch :)

20070308

As três idades, G. Klimt

20070307

Callejón andaluz

Calle de los Siete Infantes, Córdova
Foto em: www.aromeo.net/archives/calle7arcos.jpeg
À medida que avanço, deixo de ocupar-me com o andar. As solas dos sapatos e as pedras criam uma cadência que, na rua vazia, se ergue, fruindo das paredes como se no imenso prazer de impregná-las com uma marca que nelas perdurará pelos tempos do Tempo. Lembro-me do Albaycín, de Granada, e dos murmúrios sussurados encantatoriamente em cada recanto. Os meus próprios passos evocam um 'tablao' e está ali o 'bailaor' e os tacões regurgitam-lhe uma transfiguração íntima como a morte, solene como um rito, rasgada como um parto. Eu ajeito o 'mantón', cingindo-o às costas, entrelaço-lhe as franjas nos dedos e a voz do cantaor, rouca e impossível, destaca-se da guitarra e do fragor sincopado e contido das palmas, secas, surdas, cantos-da-terra. Cantes hondos, cantes jondos - desprega-se a alma e com ela o corpo. E já não são passos e pedras mas requebros de 'bailaora con su cuadra' ( e por dentro das pedras, as febres de Rafael, de Antonio, de Federico, os arrobos doridos de Al-Mutammid, de Boabdil...). Um tremeluzir de luz e sombra e a rua volta a ser aquele 'callejón' e, por muito que tente, já não consigo ouvir apenas os meus passos...
...Até loch!

20070306

Indulgências

Anoitecer de um dia pardo de chuva... O trabalho também não foi realmente estimulante e nem deixou, ao menos, aquela sensação de alívio de tarefa feita, que só amahã o remato. Estará, pois, na hora do conforto: Recosto-me mais mal do que bem na cadeira, sirvo-me um simpático whisky num igualmente simpático copo, apercebo, sob o candeeiro, a gata feita novelo de sono e mimo, o caderno de capa preta e a velha Sheaffer, já com umas cicatrizes no casaco, e oiço música. Tudo isto como aconchego de fim de dia e também como busca de inspiração para uma carta. Misturam-se pensamentos: ontem soube da morte de Henry Troyat, hoje o Contra-capa recordou-me o aniversário do Gabo. Há dias homenageávamos o José Afonso e há dias homenageávamos também o Assis Pacheco. Há um ano e seis dias despedimo-nos de um outro poeta, Fernando Tavares Rodrigues. E foi com gosto que conheci na semana passada o Miguel Real e com gosto que li o último ensaio do Jorge Morais sobre Bocage. As palavras... Os autores das palavras que se escrevem sem nunca serem, de facto, possuídas. Uma apropriação legítima e com história, um transbordar dos silêncios, as mais das vezes. Que o digam, talvez, os rosários dos Buendías, ou, talvez melhor, Melquíades. Ou o Florentino Ariza ou, talvez melhor, a Fermina Daza. Palavras... Muitas, muitas palavras. Que bom!
Cumpleaños feliz y mucha salud, Gabo! Até loch!

20070304

Lista para uma tarde de Domingo, em Março

Tempo cinzento, Seurat
Uma certa melancolia, só com uma casquinha de limão, uma colher-de-chá de mel e algumas folhas de hortelã. Um ar húmido sem exageros de pantanal na pele, umas alpergatas de andarilha e um xaile arredondado e macio. Uma cana de pesca que se adivinha a prolongar uma silhueta do outro lado, um livro exumado da estante onde repousava há uns bons trinta anos, com ar de relíquia e aventuras blavatskianas contadas por um argentino, mais as tremuras das árvores e das águas, como serenos arrepios. Um eco passageiro da tagarelice de um grupo com crianças ao longe, um disparate inesperado de sol, súbito e efémero, a iluminar a reverberação de uns pensamentos, entre o estouvado e o deliciosamente simples. A ideia de um quadro, o trautear baixinho de um excerto azul de Gershwin, uma caixa de lata com pastilhas de mentol e um maço de cigarros confirmado no bolso. Uma caneta de tinta permanente, um pequeno diário de viagem com capa de pele preta a transbordar de entrelinhas. Uma ponte (de preferência japonesa), uma sintonia e um loch dentro de um loch.
Até loch!

20070303

Aniversário

Hesíodo e a Musa, Gustave Moreau

Faz hoje 17 anos que o meu Pai partiu. Lembro-me, com uma nitidez extravagante, da sensação de alívio e de bem estar que lhe acompanharam a partida. Lembro-me do seu riso, incorrigivelmente agarotado, do brilho juvenil nos olhos muito negros a contrastar com a madurez grisalha dos cabelos. É-me impossível lembrar-me do meu pai sem sorrir. O desgosto de vê-lo partir amaciou-se com a liberdade que lhe era devolvida, transformando-se numa saudade boa, numa cumplicidade algo inexplicável que se acentuou com a sua ida. A imagem que coloco aqui só faz sentido porque acho que foi precisamente assim que ele seguiu a sua caminhada: juvenil, inspirado e protegido. Um beijo, Pai. E se não apreciares Gustave Moreau... :)

Até loch.

20070302

Março

Março - Les Très Riches Heures du Duc de Berry, Irmãos Limbourg: Paul, Hermann e Jean

Quem não lembra, quem não gosta das Águas de Março do Tom Jobim?

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma conta, é um conto
É uma ponta, é um ponto, é um pingo pingando
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

Até loch!

20070301

Desfolhando, desfiando, desbastando...

El maíz, Diego Rivera. Copyright © 1990. Dover Publications, Inc.
Desfolhando, desfiando, desbastando... Como mantras, repetem-se os gestos que alimentam, que arroupam, que afagam, que sustentam num ritual eternamente renovado, como estações do tempo e do sagrado. Amamos. Cantamos. Brincamos. Dançamos. Trabalhamos. Lutamos. Somos filhas e irmãs e companheiras e mães e avós e conselheiras - mulheres que vivemos declinando o que a natureza, num infindável quando, ecoa por todo o seu domínio, da partícula ao universo, num pulsar arrebatado, num fascínio. Pagamos o preço do apreço, enlaçadas nos laços dos afectos, sem tectos nos regaços. Tecemos. Entrançamos. Bordamos. Cosemos. Juntamos. Às vezes não dormimos. Velamos. Às vezes não sentimos. Cuidamos. Às vezes não dizemos. Calamos. Lunares com força de marés, negamos desterros de galés. Solares, rasgamos ferros. Erguemos o coração bem alto, acendemos as nossas lamparinas, propensas a pressentir o Derradeiro. Pés nus, montamos num deserto a nossa tenda, damos o salto, deixamos de vez de ser meninas para sermos então um Ser inteiro. E quem me entender, que entenda... Até loch!

20070225

Adejos, arquejos e arpejos

http://www.big-pond-rumours.com/index_files/image4471.jpg

Entreabri os olhos para ver que o dia está de chuva e de frio e sentir que estava empapada com as canseiras da semana. Espreguicei-me. A preceito. Com aquele trejeito de asa dobrada que se dá aos braços, endireitando as costas e desenhando um arco largo, quase inverosímil, no ar, com os pulsos a quererem chegar às pontas dos dedos. O movimento deve ter tido algum efeito, porque no instante seguinte estava a programar freneticamente o dia, até aperceber-me que estava na página de amanhã da minha agendazinha mental e que hoje me posso dar ao luxo de alguma calma, apesar de ter garantidas algumas horas de trabalho à frente deste monitor. Mais tarde, provavelmente passarei também algumas diante do outro monitor a ver ou a fazer de conta que vejo a festa dos óscares. Entre uma coisa e outra, uma chávena de café e um conforto no loch. E enquanto me deixo ir no embalo do rumorejar das águas e da folhagem, lembro as muitas horas de viagem de ontem, em que o rumorejar do combóio, se fundia, como este, devagar com outros rumorejares. É como se houvesse um arquejo paralelo à respiração do próprio ar, uma música subliminar, suturante, pacificadora, que como um fio se afasta do novelo emarasmado das perguntas e dos nós sufocadores da procura de respostas. Claro que é ambíguo e difuso, mas é sempre ambíguo e difuso o fantasma que nos acompanha, é sempre o outro lado de qualquer coisa que só conhecemos enquanto nada a matou, negou, recusou ou cortou em nós e que, apesar da morte, da negação, da recusa ou do corte, persiste, difusa, ambígua, rumorejando, numa estação etérea que não deixa de também ser nossa. O café arrefece na chávena, o ficheiro minimizado aqui ao lado manda-me um grito impaciente que me obrigo a ouvir, por muito que me apeteça continuar no loch a beber café frio e a ouvir rumorejares. Bom! Vamos lá a tirar a barbatana da água, buscar café fresco e...
Até loch :)

20070223

Sama

http//www.people.cornell.edu

(...) Como poderá o peixe em terra seca
não saltar logo para o mar
quando do oceano tão fresco
lhe chega o som das ondas?
Como poderá o falcão não voar,
depois da caça, de volta ao braço do rei
quando ouve o tambor do falcoeiro
chamá-lo: ‘Vem, volta!’?
Por que não começará qualquer Sufi
a dançar, como se fosse um átomo,
em torno do Sol da duração
que salva da impermanência? (...)
(...) E quando alguém mencionar
a graciosidade do céu à noite,
sobe para o telhado,
dança e diz:
Assim? (...)


Jalal ud-din Rumi

Assim? :) Até loch...

20070220

circuladô de fulô

circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão um ferrugem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como um nervo tenso retenso um renegro prego cego durandona palma polpa da mão ao sol

circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que
me ensinou já não dá ensinamento

circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá

Haroldo de Campos
E não é que fui descobrir que a Izabel Padovani com a sua voz invulgar canta os Retalhos de Cetim (Cauby Peixoto/Benito de Paula), para além deste poema do Haroldo de Campos musicado pelo Caetano Veloso? Pois que não seja uma terça-feira de carnaval completamente em vão: pelo menos, que os ouvidos fruam. Até loch.


20070219

Cinza, cinzas e cinzentos

'Grey Skies, The Flying Cloud', Montague Dawson
Não creio que alguma vez consiga conciliar-me genuinamente com a constante e acre constatação de que a vida é sempre um imenso e tortuoso emaranhado de cinzentos. Ao fim de todos estes anos, ainda não o consegui e, sem precisar de dotes de vidente, por longa ou breve que seja a minha continuação desta viagem, não creio que me seja alguma vez possível albergá-los em mim com um mínimo de aceitação. Talvez porque têm o triste condão de deixar-me numa perplexidade que toca as raias da aberração, que me imobiliza num nevoeiro que me cega, não por não ver, não por não querer ver, mas porque não me é possibilitado ver. Em anos menos maduros, ainda tentava toscas apalpadelas em busca de qualquer coisa que me proporcionasse uma referência. Mas hoje vejo-me mais tentada a esperar que a cinza se dissipe com a mesma não-interferência da minha parte com que se precipitou para cegar-me o mundo. Até porque estou cansada. Incomparavelmente mais cansada do que estava há um ano e quinze dias, incomparavelmente mais cansada do que estava há três dias. Foi um nevoeiro súbito que se abateu, que eu não soube ver anunciar-se e que desabou sobre mim, como um limbo súbito, com o seu fedor próprio, como de morte, mas sem a virtude negra ou branca que esta tem. Cinzento. Como um pesado reposteiro que alguém corre, provavelmente acreditando que só assim poderá zarpar para o seu próprio destino. Não sei. Nem posso saber porque múltiplos foram os véus que se construiram antes do derradeiro, do definitivo reposteiro. Há-de dissipar-se, apesar da marca que indelevelmente me fica tatuada - como dizia aquele personagem do «Mystic River», quando nos acontece, é para sempre - mas há-de dissipar-se para eu poder voltar a ver e perceber e saber e sentir e ser quem ainda recordo que sou. Há-de dissipar-se. Porque sim. Até loch.

P.S. - Entretanto, aqui mesmo ao lado do loch, a bizantina prenuncia a Primavera e declara que aquela cidade invisível termina ali... desejo-lhe que a razão seja por estar a construir uma outra cidade de picos mais altos e luz mais radiosa!

20070215

... e rosas

www.minerali.it/immaginiprodotti/
...ou, como diria Jalal ud-din Rumi:

A noite partiu; no entanto, meu amigo,
a nossa história ainda não chegou ao fim.

20070214

Entre rosas e rosas

Gertrude Stein, por Pablo Picasso
Andei a vagabundear por aí. Um bocado à toa, é certo, como em qualquer devaneio que se preze. Mas a verdade é que os passos aprendem de cor alguns caminhos e sentei-me à beira de três alpendres - este, este e este. E que alpendres! E que gostos são estas paisagens que nos metem dentro dos seus próprios recantos, consentindo-nos partilhar casa e quintal!

Depois fiquei com aquela useira urticária na ponta dos dedos, naquela danação de urgência que nos faz pianar as teclas num allegro molto energico, e ocorreu-me que a data de hoje nos remete para uma tradição que só as modernidades consumistas tornaram nossa, que antes nos contentavamos com um S. Gonçalo de Amarante, com um Sto. António de Lisboa ou de Pádua, para o caso tanto faz, mas pronto, está bem, que uma rosa é uma rosa e um postal é um postal e um bocadinho de romance, mesmo em embalagem de plástico e ritual impingido, nunca fez mal a ninguém, digo eu, e um jantar à luz de velas até cai bem enquanto as coisas não se estragam e aí é preciso tirar os castiçais da vista, não vão eles virar-se contra alguém, enfim, que a vida tem destas coisas, mas adiante, que quantas vezes nesta centrifugadora dos quotidianos até precisamos de um néon qualquer a estalar-nos o olhar dos dias para reservarmos momentos para viver o nosso amor e mimá-lo com rosas, com postais e com jantares à luz de velas.

Só que entre urticárias e santos e plásticos e rosas, acabou por espreitar um pensamento bom, com perfume, pois claro, e lá segui eu por devaneios entre O Nome da Rosa e a Rosa de Hiroxima e a 'percepção' sub-Rosae que traz ao de cima a luz, como água num poço, até das mais aparentemente óbvias soturnidades dos dias. Aliás, como dizia a Gertrude Stein A rose is a rose is a rose... Até loch:)

20070213

Afinal, pessoas...

Justiça, Luca Giordano
Satisfaz-me verificar, como pessoa e como cidadã, que finalmente começamos a abdicar de nos vermos como olímpicas torres de marfim, quando temos tantas minhocas e ratazanas a escavar-nos os sótãos. Parece-me higiénico e saudável, nos verdadeiros sentidos das palavras. Claro que estou a referir-me ao Prós e Contras de ontem. Apesar de muitas vozes de pessoas directamente afectas a essa área profissional e de soberania reverberarem em ironia, quanto a alguns momentos do debate de ontem, e outras muitas se fixarem quase que exclusivamente na questão das eventuais custas de uma petição, creio que ontem se deu um grande passo sem ser nos corredores furtivos e secretivos que cruzam as tão faladas 'sedes próprias' , neste caso, da Justiça. Quantas vezes não ressinto que ao despacharem-se sem mais delongas certas discussões para essas tais 'sedes', não se faz mais do que levá-las para meandros próximos de um certo catacumbismo silenciador, deixando os 'leigos' ou 'profanos' desses mundos votados à condição servil de incompetentes e inaptos para entender o que tão venerandas figuras poderão discutir, apesar do facto de qualquer de nós poder estar sujeito às jactâncias egotistas, às mirambolâncias interpretativas ou às possíveis sabedorias das suas contendas privadas. Por isso, ontem gostei. E gostei principalmente porque o facto de começar-se a questionar publicamente, a discutir publicamente, mesmo correndo o risco dos inevitáveis tecnicismos, parece ser um bom indicador de que afinal somos todos pessoas. Até loch.

20070212

Foi você que pediu... um Alka-Seltzer???

Eles são abalos, frémitos e mais tremores,
Vêm em chusmas as mui sábias reflexões,
Os comentários, as doutas explicações
- Que esta terra é toda feita de doutores!...
E quando já se me instala a agonia
E vou em busca da pastilha efervescente,
Eis que a própria terra num acesso de azia
Se adianta e freme ao largo de São Vicente
O meu apetecido e salutar arroto!
Foi um valha-me Deus por todos os canais
Da Rádio e da têvê, porque o terremoto
Passou a ser notícia melhor que todas mais
E displicentemente o sábio, génio e douto
Passou a ser serôdia matéria dos jornais.

Ah... mas não, não acabou ainda o sururu
Que há p’raí pessoas que em circunspecto brado
Acham que o sismo foi obra de Belzebu
Ou manifestação de Deus-Pai irado
Porque ontem foram mais os a dizer que sim
o que na certa p’ra eles deve ser pecado...
mas eu, pobre crente, eu tenho cá p’ra mim
que é mais sina, negro destino e fado...
Aliás, melhor farei em guardar o remédio
Não vá alguém tomá-lo em distracção
E arrotar o neurónio, que por razão de tédio
Abdica de vez da potencial função,
E ao libertar-nos, quiçá, do santo assédio
nos condenaria – cruzes credo - à perdição!

:D Até loch!

20070211

Avec le temps...

Avec le temps - é um esvair de alma. Léo Ferré é o protagonista. Pseudo. Protagonistas somos nós qui oublions les voix, les mots des pauvres gens. Avec le temps... esvaímo-nos. Por uma gota, um furo de nada feito de acasos e poentes, ocasos estranhos nos poços da vida. Avec le temps... com o tempo, o tempo, o tempo... essa corrente estranha, tipo rosário, que já nem sabemos rezar mas que continuamos a saber correr por entre os dedos. Ficam-nos os calos na pele, que nos doem, por um lado, e que, por outro, nos retiram uma certa maneira de sentir. Apetece-me rasgar qualquer coisa. Uma qualquer capa, véu, casca. Rasgar. Deixar-me transpirar até que o próprio odor do meu suor e da minha dor me ataque as narinas, dilatando-as, tanto, tanto, que toda a minha pele seja olfacto e eu me torne nesse aroma ácido, inebriante, impossível, irracional.

Porque só sendo esse cheiro invado o ar todo que me consome e passo a ser eu a consumi-lo, a tragá-lo num ápice do meu tempo e a fazê-lo meu.

As vozes perturbam-me e eu corro as cortinas e as persianas da alma, porque não quero ouvi-las. Só quero este naufragar autêntico com sete notas dilacerantes e autênticas, cansada que estou da plastificação das atmosferas da consciência. Não... não, ainda não foi desta que me ganzei nem alucinei para além das vísceras. Mas apetece-me rasgar . Com ruído, com aço, com raivas indizíveis como a paixão da entrega. Trepido nas minhas veias a violência extrema das minhas febres de lucidez. Sofro-me inexoravelmente e choro-me os abandonos de mim a que tantas vezes me voto. Num frémito invulgar, sou como uma onda, um fragor de aroma que nem sequer é manso. É suor. Quente, ácido, violento, transtornante. Sou o cheiro da minha semente e do meu fruto. As ilusões do andrógino já eram. Hermafrofita ou nada. Hespéride ou pevide. Útero ou odre. Avec le temps... esvai-se a alma na concentração de toda a sua substância. Reduzida à sua ínfima espécie - a mais básica, primordial e avassaladora. Paradoxos de proto-vida.

Afunilo-me. Não é muito possível mas afunilo-me. Escoo-me por um conta-gotas qualquer em busca da precipitação desejada. Uma gota de suor. Poderia ser sémen ou mênstruo, mas não. Não tem esse hino da Obra por fazer. Só tem a magia da Obra feita.

Como me torno arrogante e me humilho perante mim própria! Que dividida estou na aparência deste gosto-desgosto que na verdade mais pura que posso conceber está tão para além das simetrias, paradoxos, dicotomias à flor da pele. Avec le temps... Mas o que é este malabarismo da consciência a não ser a manipulação extravagante do aprendiz de feiticeiro?

Na proveta, uma gota mal-cheirosa de suor e no ar o mau-cheiro a sopa que tudo invade fluidamente, mas.... que garante a Obra. Ao negro, sim. O corvo canta. E canta em todo o esplendor do seu negro-azeviche e em toda a sua solidão. Garante o rubro, o branco, o escarlate, o ouro. A mirra e o incenso em dois potes descobertos esfumam-se miscigenando-se sem lógica aparente. Avec le temps.... tudo se torna fumo. Acre ou doce. Místico ou profano. E o ar todo inunda, com o tempo... com o tempo...

20070210

As minhas lamparinas

Sábado... (saravá, Vinicius!) Remato esta semaninha cheia - em que os percalços da gripe a adornaram com o aspecto dúbio de uma corrida de obstáculos - e revejo, como quem ainda desfruta o sabor deixado pelo cálice de Porto, a excepcionalidade tão feita de grandes pequenas coisas destes sete dias: desde o jorro de trabalhos feitos quase em contra-relógio que (para variar) até foram pagos contra-entrega, às imensas horas passadas nas rotinas médicas de uma Mãe que trazem a notícia inesperada de um grande sucesso, aos momentos de prazenteiro disfrute familiar e farta partilha com os amigos, ao deleite de um serão bem entremeado com a Negra Sombra da Rosalía de Castro, pela voz e interpretação da Luz Casal, e o sempre bom 'Je suis malade' do Serge Lama, virado maravilha na interpretação da Laura Fabian, passando pela ironia inteligente e divertida dos 'Negros Hábitos' do Almodóvar e pelas alegrias de não termos deixado de saber rir e ternurar cá em casa... Foi uma semana e tanto! Claro que também houve a habitual parada de dores e desagrados, de decepções feitas do desvirtuosismo corrente, da depravação com que se aferram desumanidades em debates (num pungente panegírico da incontinência) e da desmemória que se desmascara na brevidade das memórias - claro que sim! Mas se me detivesse a saborear isso, correria o risco de perder o gosto de todas as grandes pequenas coisas que me alumiam dias e noites e me consentem essa paz indispensável para ficar atenta ao silêncio. Um bom fim de semana! Até loch...

20070204

«Foi desde sempre o mar...»

O belo texto do Cristóvão de Aguiar levou-me de passeio por uma bela ala de imagens guardadas com algum cuidado, aquele tipo de cuidado que até lhes preserva os sons e os cheiros. O dia meio cinza entra no tom da areia fria e dos ventos desajustados que nos ressoam nos ouvidos, como flautas de cana em busca de um acorde, e que nos fazem respirar como quem engole uma poção, num sorvedouro entrecortado de sal e ar. A humidade a velar-nos a pele, os olhos a marejarem-se na estridência da luz e a voz azul e imensa de sete tons a contar e a recontar e a renovar contos e cantos no seu contínuo milagre de fragores e calmarias... E com outros ventos, passam por mim outros cantos. Mas hoje o que se detem por aqui é o Mar Absoluto da Cecília Meireles. Até loch.