20070219

Cinza, cinzas e cinzentos

'Grey Skies, The Flying Cloud', Montague Dawson
Não creio que alguma vez consiga conciliar-me genuinamente com a constante e acre constatação de que a vida é sempre um imenso e tortuoso emaranhado de cinzentos. Ao fim de todos estes anos, ainda não o consegui e, sem precisar de dotes de vidente, por longa ou breve que seja a minha continuação desta viagem, não creio que me seja alguma vez possível albergá-los em mim com um mínimo de aceitação. Talvez porque têm o triste condão de deixar-me numa perplexidade que toca as raias da aberração, que me imobiliza num nevoeiro que me cega, não por não ver, não por não querer ver, mas porque não me é possibilitado ver. Em anos menos maduros, ainda tentava toscas apalpadelas em busca de qualquer coisa que me proporcionasse uma referência. Mas hoje vejo-me mais tentada a esperar que a cinza se dissipe com a mesma não-interferência da minha parte com que se precipitou para cegar-me o mundo. Até porque estou cansada. Incomparavelmente mais cansada do que estava há um ano e quinze dias, incomparavelmente mais cansada do que estava há três dias. Foi um nevoeiro súbito que se abateu, que eu não soube ver anunciar-se e que desabou sobre mim, como um limbo súbito, com o seu fedor próprio, como de morte, mas sem a virtude negra ou branca que esta tem. Cinzento. Como um pesado reposteiro que alguém corre, provavelmente acreditando que só assim poderá zarpar para o seu próprio destino. Não sei. Nem posso saber porque múltiplos foram os véus que se construiram antes do derradeiro, do definitivo reposteiro. Há-de dissipar-se, apesar da marca que indelevelmente me fica tatuada - como dizia aquele personagem do «Mystic River», quando nos acontece, é para sempre - mas há-de dissipar-se para eu poder voltar a ver e perceber e saber e sentir e ser quem ainda recordo que sou. Há-de dissipar-se. Porque sim. Até loch.

P.S. - Entretanto, aqui mesmo ao lado do loch, a bizantina prenuncia a Primavera e declara que aquela cidade invisível termina ali... desejo-lhe que a razão seja por estar a construir uma outra cidade de picos mais altos e luz mais radiosa!

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

continuo aqui ao lado, ainda sem saber se inicio, ou não, a construção de outra cidade.

eu vejo anúncios da primavera por todo o lado :)

alexandra

2/19/2007 11:06:00 da tarde  
Blogger T-Regina said...

alexandra :) por razões absolutamente egoístas, gostaria muito de vê-la montar outro estaleiro, se é que está mesmo decidida a não ajudar a crescer as paisagens mais ou menos invisíveis da cidade, por onde é sempre tão gostoso deambular... Quanto aos anúncios da Primavera, que se lhe conservem esses olhos!!! :)
Um abraço T-Regínico

2/20/2007 04:19:00 da tarde  

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