20070430

Cometi uma imprudência. Fatal, é certo. Reli coisas que escrevi há muito tempo aqui no loch. «Desde que me lembro de ter noção de mim que tenho uma atracção muito própria para aquilo a que, desde há algum tempo, chamo de 'horas apócrifas'. Claro que não incorro na tentação costumeira de atribuir ao adjectivo nada além do que significa, isto é, algo cuja autenticidade não está comprovada, pressupondo, obviamente, que a autenticidade também tem muito que se lhe diga e que pode referir-se a vários patamares - autoria, rigor de conteúdo, etc. Mas sendo a hora apócrifa, não me apetece ir por aí. Apetece-me ir por onde as horas apócrifas me levam - ao sabor de ecos em mim. Ah... e convirá, talvez (quiçá! :)) dizer que para mim são apócrifas as horas que não precisam de códigos de barras, de legendas, de livrinho de instruções, de manual operacional e - muito menos, benza-as Deus! - de planeamentos quinquenais, trienais nem anuais, porque podem dar-se ao luxo de ser à solta, como bons selvagens (lollllllllll - não, também não quero ir por aí, que me parece atalho, e eu nestas horas nem quero asfaltos, nem britas, nem desenhos quanto mais mapas!). Poderei dizer, quase com candura ('quase'), que as horas apócrifas são a forma de medir um certo tempo no loch. Como ontem comentava tão especialmente bem o Dragão no Dragoscópio, são horas em que sabemos que estamos a ser escritos pela pena da morte e em que em nós acorda um talento para ler nas entrelinhas. Que engraçado... isto poderia ser dito de tantas e tão variadas formas... ;) No outro dia , o Incognit thing escrevia os tons das rotinas e das angústias (Entre um café e um pastel de nata) com pinceladas argutas, ainda que (im)próprias da sua juventude, e lembrou-me os passeios que eu costumava fazer, em anos semelhantes e em horas igualmente apócrifas pela espuma da bica que arrefecia diante do meu nariz, sem outro alucinogénio que a minha própria alucinada lucidez. O carlos a.a. deixou-me ontem um comentário à sua maneira e eu comovi-me à minha maneira e senti-me tão velha e tão pequenina. Tão T-Regina e tão mínima. A bizantina fala-me do seu budista e da luta que trava para ser a senhora da sua paz e eu comovo-me pelo épico que tem a sua luta desarmada e pela sua conquista antecipada e certa. Comovo-me. Movo-me com. Por isso gosto de perfumes, de essências que, fluidamente, numa ambiguidade que é só sua, nos invadem. São o estandarte das horas apócrifas onde se diz o que não se diz, onde se criam as mais improváveis pontes e onde todos os astros estão à distãncia de um pensamento. A dor de uma ausência a que se chama saudade transmuta-se na flor que desabrocha no nosso colo e, assim, sem ninguém dar conta nem explicar, torna-se na origem do nosso próprio nome, sem que o pudessemos ter pressentido, quanto mais adivinhado. Círculos... ciclos... espirais doidas que não racionalizamos sem antes reinventar um sete ou entender os porquês dos côvados. Lá vem a chuva oblíqua... Dedilha na janela como um mantra. O fumo do cigarro parece a batuta dessa tão improvável sinfonia. Na universalidade do som, um Ré (Rah) Maior explode as essenciais declinações de todos os mitos. Mas também não quero ir por aí. A hora é apócrifa e sem atilhos. O voo será sempre mais subtil do que a asa. O loch, apesar de tudo, será sempre mais subtil do que o lago. Por isso mesmo, por isso agora, até loch...»
Tudo me dói. Até a memória......
Até loch se loch houver......

20070413

Janela

Foto: M. Teixeira
Frondosas, as margens recurvavam-se como que em abraço pela paisagem. O rio, nas sombras taciturno, desfranzia-se pela luz ao sol-nascente. Os pássaros, em bandos, revoavam, desciam, subiam de repente, na falsa inquietação da alegria. Era azul e era verde em feira franca. Mais perto, o burburinho saltitante dos pardais, os pombos em arrulhos pela calçada, as varandas transformadas em beirais. Despedindo-se, o frio da madrugada, deixava um rasto de água e uma aragem. Nos prédios, os raios incidentes criavam estrelas refulgindo nos metais e, nas ruas, acordavam os rumores do dia-a-dia. A minha janela tornara-se viagem... e lavada já da noite, eu renascia.

Até loch :)

20070401

Cante Hondo

Foto: M.Teixeira

Eu meditava, absorto, enrolando
os fios do fastio e a tristeza,
quando chegou aos meus ouvidos
pela janela do meu recanto, aberta
a uma abafada noite de verão,
o planger de uma trova sonolenta
quebrada pelos tremores sombrios
dos magos soares da minha terra
... E era o Amor, como uma chama rubra...
- nervosa mão a uma vibrante corda
cedia um longo suspirar de ouro,
que se tornava em nascente de estrelas -.
... E era a Morte, de cutelo ao ombro,
de passo longo, turva e esquelética,
como, quando menino, eu a sonhava
E na guitarra, exuberante e trémula,
A brusca mão, ao fustigar, fingia
O repousar de um ataúde em terra.
E era um plangido solitário o sopro
Que a poeira varre e a cinza acalenta.

Antonio Machado
trad. Margarida Santiago