20060923

No bolso do meu avental...


Qual alcoviteira, passei hoje algum tempo a calcorrear de postigo em postigo, lambuzando os dedos na gulodice das descobertas e das redescobertas e guardando no bolso amplo do avental um que outro retalho para revisitar mais tarde, um que outro pedaço de doçaria para saborear num momento de insónia. Passeei pelos âmagos de confidência, profundos como as grutas do meu loch, que são esses poemas de mulheres, que, assim, como no desabrochar de uma cor no óleo de uma tela, soltam um brilho íntimo e incrustado - como pepitas a reverberar estrenuamente no fundo de uma ignota mina. Pois claro que ainda tenho no bolso do avental a Carta de Paris da brasileira Ana Cristina César, que preferiu deixar-nos em 1983, aos 31 anos de idade.

Não resisto a que as suas palavras ecoem no loch...

Carta de Paris - Ana Cristina César

I

Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia, tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido e é apenas um delírio que vejo

campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo Anaïs de capa negra bebendo com Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia-luz com Leslie fazendo de francesa e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio de manhã e pensa na Força de trabalho que desperta, na fuga da gaiola, na sede do deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada, talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.

II

Paris muda! Mas a minha melancolia não se move. Beaubourg. Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra. Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você, minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem de disc-jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta tEus sonhos de noiva protegida, e penso em você, amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trémulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que gorjeiam e penso enfim, do nevoeiro, em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!