20061031

Cores novas

É a noite de Sahmain, é o gosto celta a deixar perfumes na boca, é o desgaste acre das circunstâncias do dia-a-dia e do colete de sete-varas onde uma certa consciência de coerência nos entala, é o conforto dos momentos simples e sem história que são os momentos a que chamamos felizes, é o desarrazoado da desproporção tão aceite que já nem notamos, nem mesmo quando os alertas de Da Vinci nos entram pelos olhos dentro, é a gargalhada que soltamos, é o cansaço por dentro dos ossos, dos órgãos e das ideias, é o sol que se acende num olhar, é o rigor de um pensamento ou de um gesto, é o bafio bolorento das coisas que nos dizem... E tudo isto entra no mesmo caldeirão donde tiramos os fios com que tecemos o nosso estar vivos. Voltei a lembrar-me da Adília (Lopes). Voltou a apetecer-me tremendamente entrar no meu próprio nonsense – uma panaceia não tão grátis nem gratuita nem inócua como pode parecer à primeira vista, mas eficaz como um spa, ou mesmo como as férias que há não sei já quantos anos que não tenho. Reviravolteio-me no loch, espreguiço-me como quem quer apanhar o sol, banho-me em néctares que me amaciam as memórias e as sedes e vou andar de baloiço, numa espécie de terapia hipnótica, onde o pêndulo sou eu e eu quem se alucina. No arco que descrevo, ganho e perco horizonte e as imagens correm como num álbum de fotos que se desfolha depressa demais. Num dado momento, sou um som que se apeia e lateja e encontra a sua casa num acorde de esferas. Num outro, os gonzos da alma rangem num abrir de qualquer coisa, forçando as artrites dos hábitos. Olho o loch. O movimento do arco mantém-me num vaivém estranho, entre um fora-dentro onde não há nem fora nem dentro. Volto a ganhar horizonte. A desproporção é uma praga e nós que a inventamos parecemos não ter nem a noção nem a vontade nem a capacidade de eliminá-la. No entanto, esse poder é nosso...

Troquei um olhar cúmplice com a minha gata, que mal interrompeu o sono para me oferecer o mimo daquele olhar magnificamente verde, e, da Adília, escorreguei sem notar para um certo jaguar do Jorge Luís Borges. Respiro fundo, paro o baloiço. Hoje quero tecer-me de cores novas. Até loch...

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

O T-Regina, como podes afirmar que queres tecer-te de cores novas? Tudo está expresso nas entrelinhas...
No fundo tudo não é que um reavivar de colorações algo "desbotadas" pelo tempo.
E nós andamos juntos a tentar dar cor à cor há muitos e muitos anos (para não dizer séculos).
Continuemos juntos, neste rumo colorido d tentar dar cor. TTA.
M

11/01/2006 12:36:00 da manhã  
Blogger T-Regina said...

Mas, M, nem sei se nos seria possível de outra forma! :) TTA claro! ;)

11/01/2006 07:51:00 da tarde  

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