20061121

Suspiros de Alice

Cheguei à conclusão de que é preciso virar o mundo do avesso... Sim, sem preocupação com as mangas, nem com o arrepanhado dos forros, quanto mais das entretelas, que, aliás, já nem se usam.

Houve uma época, de marulhares discretos de linhos. Outra, em que o restolhar que se ouvia era o dos brocados, pesados e barrocos, a fazerem de música de fundo em salões, onde para além das alcovas de diz-que-disse, vilanagem e perversão e das esconsices das misérias – misérias a sério, daquelas que deixam pústulas de fome, peste e desvairado desvio -, as conversas também fluíam com substância de ideias e havia aventuras de conquista a inspirar os neurónios menos entalados na obsessão engavetada dos domínios. Depois alternavam-se os tafetás, as ambiguidades de brilho colorido e o resfolego cansativo e abrumador das poses, com os adamascados estirados pelas paredes, pelos sofás, pelas camas, pelas mesas e janelas, com as sedas, em que se atirava para a cave a aspereza do labor, usando-as escorregadias e fáceis, e com os veludos de aconchego morno, um tanto delicodoce, um tanto deliconobre, um tanto delicomanso. E tudo restolhava em maior ou menor surdina, abafando à vista, ao tacto, ao olfacto e ao ouvido os pululantes insectos esotéricos e exotéricos e outros elementos de incómodo similar. Depois, noutras épocas passámos pelas chitas, pelas gangas, pelo terylenes, pelos poliesteres, pelas licras, adaptando as orelhas aos novos sururus, ainda que deixando os outros sentidos no continuado ensaio, e, cada vez mais entalados, de tão ébrios de domínios, passámos a acreditar que somos todos donos uns dos outros e que nos levamos de trela e açaimo no esplendor de uma qualquer ideia, cuja essência, coitada, já se perdeu pelas gavetas. Curiosa e paradoxalmente vamos inchando e minguando...

(Sem me dar conta, um suspiro igual ao da Alice no País das Maravilhas: It was much pleasanter at home, when one wasn't always growing larger and smaller, and being ordered about by mice and rabbits.)

Pois é... o descanso que não seria se virássemos mesmo o mundo do avesso!...