20070329

Lenga-lenga-lenga-lenga

Mais me parece que malho,
sem cansar, em ferro frio.
Às vezes não há trabalho
noutras é de arrepio
Mas a gente até se alegra
a julgar que se vão ver

os frutos em ‘contra-entrega’
e que desta é p’ra valer
que houve ‘gentleman’s agreement’
sorriso, aperto de mão...
mas o ‘marvellous achievement’
(são eles que o dizem, eu não!),
só terá seu pagamento
quando não sei que entidade
aprovar o provimento...
depois a contabilidade
mediante a minha factura
confirma no orçamento,
item, norma, assinatura
para poder dar andamento.
Agora é só preencher
O cheque que me vão pagar
“Hoje devem aparecer
os dois que vão assinar”,
responde-me ao telefone
a nova interlocutora
de quem não sei nem o nome,
quando reclamo a demora.
Mais de um mês já é passado
desde o pedido, de urgência,
que eu cumpri pelo meu lado.
Mas do deles... só flatulência.
Ao fim de outra semana,
lá volto a telefonar...
E oiço, incrédula, insana:
“Estão os dois a viajar...
Lamento, compreendo bem...
Sim, sim, tem toda a razão...
Mas para a semana que vem
Certamente, já cá estão!”
Dois meses já são passados
E é tarde de sexta-feira
E o cheque, daqueles traçados
Entra-me enfim na carteira.
‘Falta agora esperar -
- penso eu c’os meus botões -
- ‘que os outros que hão-de pagar
dêem menos confusões...’
Mas na segunda é feriado...
Frigorífico vazio...
No Banco conta a dobrado...
Não paguei ao senhorio...
(Eu vejo-os por todo o lado,
ostentando o seu bem-estar!...)
Dói-me trabalhar fiado
E ‘inda por cima pagar!

Até loch!

A propósito de Poesia...

Mucha, Poesia
Emily Dickinson - Trad. de Jorge de Sena

Morri pela Beleza - mas mal eu
Na tumba me acomodara,
Um que pela Verdade então morrera
A meu lado se deitava.
De manso perguntou por quem tombara ...
-Pela Beleza - disse eu.
- A mim foi a Verdade. É a mesma Coisa.
Somos Irmãos - respondeu.
E quais na Noite os que se encontram falam -
De Quarto a Quarto a gente conversou -
Até que o Musgo veio aos nossos lábios -
E os nossos nomes - tapou.

Até Loch :)

20070317

Entre o sonho e o real

Sagrada Familia, Gaudi, Barcelona
O cárcere profundo e de pedra; a sua forma, a de um hemisfério quase perfeito, embora o pavimento (também de pedra) seja algo menor do que um círculo máximo, o que, de algum modo, agrava os sentimentos de opressão e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de altíssimo, não toca a parte superior da abóbada; de um lado estou eu, Tzinacan, mago da pirâmide Qaholom, que Pedro de Alvadaro incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Ao nível do chão, uma ampla janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia), abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que os anos foram apagando manobra uma roldana de ferro, e baixa, na ponta de um cordel, cântaros de água e pedaços de carne.

A luz entra na abóbada; neste instante posso ver o jaguar.

A Escrita de Deus, Jorge Luís Borges

20070314

Anúncios de Primavera

Monet, Jardim em Giverny
Neste dia de Primavera anunciada, claro que me lembro da última paisagem que vi na cidade invisível e que me pergunto por que cidades andará caminhando a bizantina... E hoje apeteceu-me especialmente voltar a passear-me pelo jardim de Monet, na tentativa de me oferecer cenário afável à alma, regalada como anda nas volutas floridas de Rumi:

A Primavera dos Amantes chega,
para que este canteiro de pó se torne num jardim;
a proclamação dos céus chega,
para que a ave da alma se possa erguer em voo.
O mar enche-se de pérolas,
o salgueiro torna-se doce como cana,
a pedra transforma-se em precioso rubi,
o corpo torna-se plenamente alma.

Até loch...

20070312

Um dedilhar. Uma corda de guitarra trémula como uma corda de vida ou como uma corda bamba que o vento faz vibrar, assim, sem aviso.... um fremir de som...



Um cacho de amoras num silvado. Um sopro. Um sopro... Até loch!

20070310

Pele de papel pardo

Há qualquer coisa que incomoda. Não, não é só cansaço. Não são só as dores no ossos, a neurodermite, a taquicardia. Há qualquer coisa que incomoda. Ume espécie de pele que não devia estar onde está e se sente opressiva, asfixiante, cheia de poder, apesar da ausência de direito natural do seu surgimento. Uma espécie de redoma criada do exterior, em material tosco, primário e, queira Deus, tão efémero quanto a consciência da sua momentânea existência. Mas incomoda como um sapato que aperta, como uma luva grosseira que inibe a sensação e até o gesto. Interessa-me fazer de conta que consigo despi-la assim, com a mesma indiferença com que se tira uma pulseira que começa a pesar no pulso. Não é, no entanto, assim tão fácil. Ligo a televisão com a displicência das rotinas. O canal é o tal dito público e apanho nos ouvidos com uma coisa que não consigo entender. É natural. Vai havendo cada vez mais coisas que não consigo entender e dá-me uma pena infinda a pobre, a miserável ficção que oiço e que, em relances, vejo. Parece um pesadelo de casebre. Como quase tudo o mais. Não é mais do que uma pele de papel pardo e, no entanto, está aqui. Ninguém me mandou ficar com um pé na terra e outro no loch... erro meu!

Sábados e alcofas brancas

Foto: http://alifeinwales.typepad.com/photos/uncategorized/white_flowers.jpg
Sábados em que apetece muito despir o cansaço todo, fazer do mundo uma enorme alcofa de algodão, receber flores em tudo, em tudo mesmo, para poder rebolar a alma em pétalas e pétalas e pétalas - qualquer coisa como pairar inteira num abraço de anjo... que pensamento bom... :)
...deve ser a Primavera que começa a sorrir! Até loch :)

20070308

As três idades, G. Klimt

20070307

Callejón andaluz

Calle de los Siete Infantes, Córdova
Foto em: www.aromeo.net/archives/calle7arcos.jpeg
À medida que avanço, deixo de ocupar-me com o andar. As solas dos sapatos e as pedras criam uma cadência que, na rua vazia, se ergue, fruindo das paredes como se no imenso prazer de impregná-las com uma marca que nelas perdurará pelos tempos do Tempo. Lembro-me do Albaycín, de Granada, e dos murmúrios sussurados encantatoriamente em cada recanto. Os meus próprios passos evocam um 'tablao' e está ali o 'bailaor' e os tacões regurgitam-lhe uma transfiguração íntima como a morte, solene como um rito, rasgada como um parto. Eu ajeito o 'mantón', cingindo-o às costas, entrelaço-lhe as franjas nos dedos e a voz do cantaor, rouca e impossível, destaca-se da guitarra e do fragor sincopado e contido das palmas, secas, surdas, cantos-da-terra. Cantes hondos, cantes jondos - desprega-se a alma e com ela o corpo. E já não são passos e pedras mas requebros de 'bailaora con su cuadra' ( e por dentro das pedras, as febres de Rafael, de Antonio, de Federico, os arrobos doridos de Al-Mutammid, de Boabdil...). Um tremeluzir de luz e sombra e a rua volta a ser aquele 'callejón' e, por muito que tente, já não consigo ouvir apenas os meus passos...
...Até loch!

20070306

Indulgências

Anoitecer de um dia pardo de chuva... O trabalho também não foi realmente estimulante e nem deixou, ao menos, aquela sensação de alívio de tarefa feita, que só amahã o remato. Estará, pois, na hora do conforto: Recosto-me mais mal do que bem na cadeira, sirvo-me um simpático whisky num igualmente simpático copo, apercebo, sob o candeeiro, a gata feita novelo de sono e mimo, o caderno de capa preta e a velha Sheaffer, já com umas cicatrizes no casaco, e oiço música. Tudo isto como aconchego de fim de dia e também como busca de inspiração para uma carta. Misturam-se pensamentos: ontem soube da morte de Henry Troyat, hoje o Contra-capa recordou-me o aniversário do Gabo. Há dias homenageávamos o José Afonso e há dias homenageávamos também o Assis Pacheco. Há um ano e seis dias despedimo-nos de um outro poeta, Fernando Tavares Rodrigues. E foi com gosto que conheci na semana passada o Miguel Real e com gosto que li o último ensaio do Jorge Morais sobre Bocage. As palavras... Os autores das palavras que se escrevem sem nunca serem, de facto, possuídas. Uma apropriação legítima e com história, um transbordar dos silêncios, as mais das vezes. Que o digam, talvez, os rosários dos Buendías, ou, talvez melhor, Melquíades. Ou o Florentino Ariza ou, talvez melhor, a Fermina Daza. Palavras... Muitas, muitas palavras. Que bom!
Cumpleaños feliz y mucha salud, Gabo! Até loch!

20070304

Lista para uma tarde de Domingo, em Março

Tempo cinzento, Seurat
Uma certa melancolia, só com uma casquinha de limão, uma colher-de-chá de mel e algumas folhas de hortelã. Um ar húmido sem exageros de pantanal na pele, umas alpergatas de andarilha e um xaile arredondado e macio. Uma cana de pesca que se adivinha a prolongar uma silhueta do outro lado, um livro exumado da estante onde repousava há uns bons trinta anos, com ar de relíquia e aventuras blavatskianas contadas por um argentino, mais as tremuras das árvores e das águas, como serenos arrepios. Um eco passageiro da tagarelice de um grupo com crianças ao longe, um disparate inesperado de sol, súbito e efémero, a iluminar a reverberação de uns pensamentos, entre o estouvado e o deliciosamente simples. A ideia de um quadro, o trautear baixinho de um excerto azul de Gershwin, uma caixa de lata com pastilhas de mentol e um maço de cigarros confirmado no bolso. Uma caneta de tinta permanente, um pequeno diário de viagem com capa de pele preta a transbordar de entrelinhas. Uma ponte (de preferência japonesa), uma sintonia e um loch dentro de um loch.
Até loch!

20070303

Aniversário

Hesíodo e a Musa, Gustave Moreau

Faz hoje 17 anos que o meu Pai partiu. Lembro-me, com uma nitidez extravagante, da sensação de alívio e de bem estar que lhe acompanharam a partida. Lembro-me do seu riso, incorrigivelmente agarotado, do brilho juvenil nos olhos muito negros a contrastar com a madurez grisalha dos cabelos. É-me impossível lembrar-me do meu pai sem sorrir. O desgosto de vê-lo partir amaciou-se com a liberdade que lhe era devolvida, transformando-se numa saudade boa, numa cumplicidade algo inexplicável que se acentuou com a sua ida. A imagem que coloco aqui só faz sentido porque acho que foi precisamente assim que ele seguiu a sua caminhada: juvenil, inspirado e protegido. Um beijo, Pai. E se não apreciares Gustave Moreau... :)

Até loch.

20070302

Março

Março - Les Très Riches Heures du Duc de Berry, Irmãos Limbourg: Paul, Hermann e Jean

Quem não lembra, quem não gosta das Águas de Março do Tom Jobim?

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma conta, é um conto
É uma ponta, é um ponto, é um pingo pingando
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

Até loch!

20070301

Desfolhando, desfiando, desbastando...

El maíz, Diego Rivera. Copyright © 1990. Dover Publications, Inc.
Desfolhando, desfiando, desbastando... Como mantras, repetem-se os gestos que alimentam, que arroupam, que afagam, que sustentam num ritual eternamente renovado, como estações do tempo e do sagrado. Amamos. Cantamos. Brincamos. Dançamos. Trabalhamos. Lutamos. Somos filhas e irmãs e companheiras e mães e avós e conselheiras - mulheres que vivemos declinando o que a natureza, num infindável quando, ecoa por todo o seu domínio, da partícula ao universo, num pulsar arrebatado, num fascínio. Pagamos o preço do apreço, enlaçadas nos laços dos afectos, sem tectos nos regaços. Tecemos. Entrançamos. Bordamos. Cosemos. Juntamos. Às vezes não dormimos. Velamos. Às vezes não sentimos. Cuidamos. Às vezes não dizemos. Calamos. Lunares com força de marés, negamos desterros de galés. Solares, rasgamos ferros. Erguemos o coração bem alto, acendemos as nossas lamparinas, propensas a pressentir o Derradeiro. Pés nus, montamos num deserto a nossa tenda, damos o salto, deixamos de vez de ser meninas para sermos então um Ser inteiro. E quem me entender, que entenda... Até loch!