Gosto, desgosto, carta...

- quantos séculos nos contemplam? -
Até loch :)
I
Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia, tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido e é apenas um delírio que vejo
campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo Anaïs de capa negra bebendo com Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia-luz com Leslie fazendo de francesa e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio de manhã e pensa na Força de trabalho que desperta, na fuga da gaiola, na sede do deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada, talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.
II
Paris muda! Mas a minha melancolia não se move. Beaubourg. Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra. Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você, minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem de disc-jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta tEus sonhos de noiva protegida, e penso em você, amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trémulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que gorjeiam e penso enfim, do nevoeiro, em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!
Todas as noites ela pensava, com alguma arrogância e, certamente, muita assertividade: “A partir de amanhã será diferente”. Mas a vida era tão dura, tão desastrosamente insípida e dorida, que recaía como numa gripe mal curada e, às vezes, pensava na bênção da pneumonia dupla e fatal. Virtualidades. Coitada. Não sabia nada de informática e muito menos de internet. Mas virtual era o melhor adjectivo para quase toda a sua vida. Claro que o problema estava no “quase”.
Pois é, pois é... não é segunda-feira (desculpa lá, Jorge Palma) e é outro dia à nora das contas, das quintas angústias e das minhas próprias águas.
Amnióticas? Talvez, ainda que não do corpo mas sempre invocadoras de umbigo. Depois de ler algumas das notícias emitidas por diferentes órgãos (sobressaem umas coisas híbridas entre fígado e intestinos) e alguns comentários-notícia às notícias que passam, assim, a ser notícia, fiquei zonza com o remoinho – ou é dos meus olhos, ou o que vale é pôr os umbigos todos a andar à roda, à roda, à roda, com os inevitáveis encontrões para conquista de espaço. Não é possível levar isto a sério. Tanta rotação acaba por me dar uma ilusão centrífuga, uma quimera de que é possível apear-me do mundo. Descorçoada é uma palavra que caiu em desuso mas que eu uso, fora de moda como sempre ando.
E posto tudo isto, se anda tudo de umbigo engalanado a ouvir-se por dentro do seu próprio búzio, mais razão me apetece dar-me, neste brincar de diz mas não diz, toca-e-foge, tapa-e-mostra que, afinal, anda de inocência perdida e descorçoado há tantos anos. Hoje somos quase todos sabedores, quando não sábios à séria e acreditamo-nos donos de tanta coisa, de tanta informação que também acreditamos nas afirmações que fazemos. Geralmente contra qualquer coisa, pessoa, situação. Obviamente que ainda não percebi se temos alguma escapatória ou se esta é mesmo a nossa medida, indefectível, inexpugnável, inexorável.
Mas, depois, como somos o tal bicho gregário, por muito que nos nossos silêncios vegetativos afirmemos o contrário, recorremos ao coreto (fruto igualmente centrífugo) na esperança de algumas almofadas de águas amnióticas, onde possamos, de quando em quando, nadar sem cortes, sem queimaduras, sem alforrecas, sem protector solar.
Estava eu a escrever isto e a lembrar-me (por causa de umas passagens que li ontem de um livro do Lima de Freitas) de um episódio desses tempos em que saíamos de uma conferência do Lima de Freitas, em que uma pessoa das minhas relações acenava o seu desacordo com a cabeça, com aquele olhar de iluminado usado pelos sábios-instantâneos, quando nos querem dizer que eles sabem, que nós não, e que jamais perceberíamos se eles cometessem a imprudência de explicar-nos. Fiquei muito mais descansada ao aperceber-me que o mesmo olhar albergava o próprio Lima de Freitas no seu horizonte, principalmente porque a temática era, como se pode deduzir, demonstrável pela ciência e não aberta a apropriações especulativas... tsstss