20060929
20060928
Adagio...
delineado
no ar repleto
uma pequena angústia
um bafo quente, um sonho
mal passado ou verde
sinfonia agridoce a pendurar
notas e emoções nas esplanadas
dos dias
... e comemos
de olhos bem abertos
este pão de amor integral feito
da quinta farinha de nós próprios
(Margarida Santiago)
Até loch :)
20060925
A propósito de um lápis colorido e promissor...
20060924
Pelo sonho é que vamos
Aos trinta e dois, é preciso continuar a acreditar nos sonhos, a crer e a amar. Pois, toda a gente sabe isto, mas às vezes sabe bem relembrar. Com um beijo para o Regsonsaurius Rex :)
É sempre no olhar que o oleiro pousa no barro que se encontra o segredo do pote. Bons sonhos, Boa viagem, bom loch...
20060923
No bolso do meu avental...
Qual alcoviteira, passei hoje algum tempo a calcorrear de postigo em postigo, lambuzando os dedos na gulodice das descobertas e das redescobertas e guardando no bolso amplo do avental um que outro retalho para revisitar mais tarde, um que outro pedaço de doçaria para saborear num momento de insónia. Passeei pelos âmagos de confidência, profundos como as grutas do meu loch, que são esses poemas de mulheres, que, assim, como no desabrochar de uma cor no óleo de uma tela, soltam um brilho íntimo e incrustado - como pepitas a reverberar estrenuamente no fundo de uma ignota mina. Pois claro que ainda tenho no bolso do avental a Carta de Paris da brasileira Ana Cristina César, que preferiu deixar-nos em 1983, aos 31 anos de idade.
Não resisto a que as suas palavras ecoem no loch...
Carta de Paris - Ana Cristina César
I
Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia, tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido e é apenas um delírio que vejo
campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo Anaïs de capa negra bebendo com Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia-luz com Leslie fazendo de francesa e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio de manhã e pensa na Força de trabalho que desperta, na fuga da gaiola, na sede do deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada, talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.
II
Paris muda! Mas a minha melancolia não se move. Beaubourg. Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra. Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você, minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem de disc-jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta tEus sonhos de noiva protegida, e penso em você, amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trémulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que gorjeiam e penso enfim, do nevoeiro, em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!
20060922
Prelúdio para qualquer coisa
Todas as noites ela pensava, com alguma arrogância e, certamente, muita assertividade: “A partir de amanhã será diferente”. Mas a vida era tão dura, tão desastrosamente insípida e dorida, que recaía como numa gripe mal curada e, às vezes, pensava na bênção da pneumonia dupla e fatal. Virtualidades. Coitada. Não sabia nada de informática e muito menos de internet. Mas virtual era o melhor adjectivo para quase toda a sua vida. Claro que o problema estava no “quase”.
Até loch...
20060921
Boa lua :)
Sete vezes sete rotas, sete rumos renovados,
Sete ramos, sete rodas, sete raivas convulsivas,
Sete rombos, sete rios, sete remos resgatados
Sete vezes sete risos, sete rimas impulsivas
Sete vezes sete fomes, sete frios, sete festas,
Sete sonhos tresloucados, sete vezes revividos
Sete vezes sete sedes, sete sedas, sete setas
Sete caminhos andados sete vezes reaprendidos
Sete minguantes de amor, sete crescentes em névoa
Sete saudades em flor e outras sete ressequidas
Sete tangos, sete mortes, sete sinas já cumpridas
Sem sarcasmo, solto, sigo, semeio sonhos de trégua
Recomeço - rodopio, rasgo ruas desabridas,
Relanço-me o desafio: sete vezes sete vidas
Margarida Santiago
20060920
Bom dia!
Há dias em que se acorda assim, como se nem se tivesse dormido. Deve ser para compensar aqueles em que se dorme, como se nunca se tivesse acordado... Seja como for, não me apetece render-me ao cansaço, ainda menos hoje, que trago uma grinalda na minha alma de mãe. Um sol que nasce, contado pelo Turner, é sempre uma colectânea de muitas histórias e uma esperança jovem a iluminar muitas outras. Uma grinalda de sóis nascentes e flores para ti, meu pote de amoras maduras :)
Um dia bom, um muito bom dia! Até loch...
20060917
Saudações aos clans
Ao querido Anónimo, ao estimado druida N Maquegêlo, ao v.o.j. que me regalou os olhos ao enviar Le Poète Allongé, de Chagall, ao Carlos A.A. que deixou as ideias a soltarem-se por aí sem nos dizer quando tornará a salpicar-nos e à Ali_se, parceira de quantas clareiras e indefectível lutadora contra as algas que dificultam, impedem, emaranham as boas navegações ;), o meu mais caloroso e cuidado acenar de cauda - a vossas mercês e aos vossos respectivos clans.
(...Mas vendo esta imagem, agora expliquem-me como é que vou arranjar 'genica' para dar conta dos dois metros cúbicos de roupa que tenho para passar a ferro? - Bon, je ferai semblant. On peut toujours se croire un poète et se croire reposé ;) não é, Ali_se? :) - Até loch!
20060916
Blogosaurismos e Desnortes
Blogosaurismos
Pois é, pois é... não é segunda-feira (desculpa lá, Jorge Palma) e é outro dia à nora das contas, das quintas angústias e das minhas próprias águas.
Amnióticas? Talvez, ainda que não do corpo mas sempre invocadoras de umbigo. Depois de ler algumas das notícias emitidas por diferentes órgãos (sobressaem umas coisas híbridas entre fígado e intestinos) e alguns comentários-notícia às notícias que passam, assim, a ser notícia, fiquei zonza com o remoinho – ou é dos meus olhos, ou o que vale é pôr os umbigos todos a andar à roda, à roda, à roda, com os inevitáveis encontrões para conquista de espaço. Não é possível levar isto a sério. Tanta rotação acaba por me dar uma ilusão centrífuga, uma quimera de que é possível apear-me do mundo. Descorçoada é uma palavra que caiu em desuso mas que eu uso, fora de moda como sempre ando.
E posto tudo isto, se anda tudo de umbigo engalanado a ouvir-se por dentro do seu próprio búzio, mais razão me apetece dar-me, neste brincar de diz mas não diz, toca-e-foge, tapa-e-mostra que, afinal, anda de inocência perdida e descorçoado há tantos anos. Hoje somos quase todos sabedores, quando não sábios à séria e acreditamo-nos donos de tanta coisa, de tanta informação que também acreditamos nas afirmações que fazemos. Geralmente contra qualquer coisa, pessoa, situação. Obviamente que ainda não percebi se temos alguma escapatória ou se esta é mesmo a nossa medida, indefectível, inexpugnável, inexorável.
Mas, depois, como somos o tal bicho gregário, por muito que nos nossos silêncios vegetativos afirmemos o contrário, recorremos ao coreto (fruto igualmente centrífugo) na esperança de algumas almofadas de águas amnióticas, onde possamos, de quando em quando, nadar sem cortes, sem queimaduras, sem alforrecas, sem protector solar.
Estava eu a escrever isto e a lembrar-me (por causa de umas passagens que li ontem de um livro do Lima de Freitas) de um episódio desses tempos em que saíamos de uma conferência do Lima de Freitas, em que uma pessoa das minhas relações acenava o seu desacordo com a cabeça, com aquele olhar de iluminado usado pelos sábios-instantâneos, quando nos querem dizer que eles sabem, que nós não, e que jamais perceberíamos se eles cometessem a imprudência de explicar-nos. Fiquei muito mais descansada ao aperceber-me que o mesmo olhar albergava o próprio Lima de Freitas no seu horizonte, principalmente porque a temática era, como se pode deduzir, demonstrável pela ciência e não aberta a apropriações especulativas... tsstss
Loch doce loch
Estive a ler Adília Lopes. E parte de uma entrevista dada pela Adília Lopes. E textos de várias pessoas sobre a escrita da Adília Lopes. Podia-me ter dado para ler outra coisa. Mas não. Aterrei mesmo na Adília, quase sem querer e gostei que ela gostasse de ler Adélia Prado. E também gostei que ela se dispusesse a ler Clarice Lispector. Depois, mesmo sem gostar, fui até à cozinha lavar a loiça ‘trasnochada’ do jantar de ontem. Claro que estava de ressaca (a loiça) ou de resseca, espojada no lava-loiças como a minha gata no mosaico da varanda. E entre pratos e frigideiras, copos e talheres, acordados pelas belas espumas do detergente, entremeei pensamentos de Adílias, Adélias e Clarices e dei comigo a perguntar-me porque não saio também eu da resseca, à conta do alegre detergente da minha alucinação? A receita parece ter provado. Nem digo isso à conta do reconhecimento ou do sucesso público de umas e de outras protagonistas do método. A receita parece ter provado, porque as três devem ter ficado supinamente aliviadas dos seus lutos ao exorcizarem, assim, nem sei se os seus roupeiros se os seus esqueletos.
Como já estou naquela idade em que é maior o passado do que a possibilidade de futuro e já consegui somar a uma série de actividades muito dignas (daquelas que, quanto mais não seja, dão lustro ao forro dos bolsos e - valha-nos isso! - ao pundonor) algumas outras, que não dão lustro a nada mas funcionam como sinalética pessoal (pelo menos fiquei a saber que passei por ali), há luxos que começo a consentir-me. Podem ser luxos de consciência e podem ser luxos de inconsequência. Ao gosto. A Adília tem 46 anos, a Clarice partiu aos 57 e a Adélia está com 71. Pelo menos acertei na faixa etária. O que é que isso quer dizer? - Nada de especial, se for preciso explicar o sorrisinho sardónico.
"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..." - Clarice Lispector
Mas antes de aterrar na Adília Lopes, parei numa estação fotográfica do Manuel Luís Cochofel a que ele deu por nome A Quinta Angústia, com base no nome de uma Irmandade/Confraria fotografada durante uma procissão de Semana Santa em Sevilha. E fiquei roída de inveja. Primeiro, porque Adílias, Adélias e Clarices já processionaram, a coberto dos capuzes dos seus escritos, uma bela parte das suas angústias quintessenciais (mesmo que a dita Quinta ainda não tenha percorrido o itinerário todo - isso a gente não sabe). Segundo, porque no estado em que as coisas andam, e mesmo que não leve andor como é bom de ver, corro o enorme risco de nem eu própria perceber que a procissão já começou. Brrrrrr... nova réplica de abalo semântico!
A verdade é que entre sismos, a loiça 'trasnochada' ficou estendida no espaldar (se fosse a Adília, não perdia a oportunidade de chamar-lhe chaise-longue, pois então!) até inciar, tmbém ela, a dua procissão pelas capelinhas dos armários, pelo adro da mesa da casa de jantar, pelas fogueiras a gás natural que a guardiã dos lares, num momento de decrépito sentido de sagrado, alumiará daqui a umas horas. Mas que sossegue a Adélia, que não vou escamar peixe nem tenho marido dado a pescarias. Aqui vai ser mais arroz de carne malandrinho, que é como quem diz, fazer render o peixe e milagrar dois bifes num jantar para três. E se houver quem leia, perguntará "E quê?" ao que eu responderei 'E nada!' e, quando chegar a hora, vamos todos jantar, eu, os meus e quem possa ler, cada um dando azo às procissões que muito bem entender, mesmo sem estar afecto a nenhuma paróquia. Digam lá se não é gostosa tamanha liberdade?
A Adília gosta de gatos e de falar de baratas. Eu gosto de gatos e de coisas baratas, mesmo que não goste de falar delas, que, mesmo baratas, saem-me ostensivamente da carteira. Das outras, substantivas criaturas aladas ou não, S, M, L, XL ou XXL, fujo a sete pés, combato a sete insecticidas, mudo de casa, ponto. Só nutri simpatia por 'uma', a que ternamente tratei por 'Adelaidinha' - a ela e a cada manifestação sua - que peregrinava, motivada sabe-se lá por que insidiosa curiosidade intelectual ou por que demanda da sua própria angústia, a parede de um 'pub' que frequentei meia dúzia de vezes há uns bons pares de anos. Claro que nessa altura, mesmo sem eu o perceber, já alimentava em mim este respeito por peregrinos e demandadores.
No entanto, enquanto que com a Adília, a Adélia e a Clarice, quem quer que as leia pode prever, percepcionar, pressentir ou perceber a peregrinação (ai que me lembro do Nabukov!!!), no meu caso, arrisco-me a imensas provações (há as telenovelas, as 'stand-up comedies', os telejornais...)
Mas pronto - os abalos semânticos acabam sempre por trocar as coisas e, neste momento que vou para obras, já nem sei se vou mandar imprimir um outdoor em letras garrafais a dizer 'sou livre, processiono' ou se vou colar cartazes nas paredes do IST da Alameda a dizerem 'sou livre, angustio-me'. Que me desculpem as almas sensíveis, mas tenho ainda uma terceira tentação, que é a de um grafitti a dizer ' sou livre, sou um aborto', mas isso hoje em dia seria algo tão disparatado como pôr à porta da Gulbenkian um placard a dizer 'proibido comer as estátuas' - para além de me ficar o amargo de boca de ser injusta com a minha mãezinha que ainda hoje jura a pés juntos que teve de me suportar como víscera nove meses inteirinhos 'con todas sus noches' (Y que Dios te bendiga, Gabo!)
A hora do jantar aproxima-se. Fujo ao dilema da Clarice e nem ovo nem galinha que o jantar vai ser mesmo o tal arroz de carne 'malandrinho'.