20061128

Presente perfeito ( ou «Um acorde»)

Le Musicien, Claude Noël
Fiquei a acenar do cais com uma metáfora de lenço talvez branco, talvez sem cor, sentindo o zarpar da nau Mário Cesariny de Vasconcelos. Entre pensamentos, misturaram-se brumas e estaleiros de palavras. E para meu espanto, serenamente... Através de uma presença Bizantina detive-me a calcorrear sem pressas por uma cidade invisível e um acorde, que por ali revolteava, veio pousar no meu ombro. Pressenti-lhe uma sugestão na lancinância do voo - de violoncelo ou de saxofone... - e um salpico de cor, tão lúcido e meta-real como uma ideia que se solta... Roça-nos o rosto um sopro de swing, uma volúpia de jazz, uma irreverência mozartina, uma palavra amiga escapulida pelas frestras das esferas. Também pode dar-se que, se nos sentarmos a olhar para aquele ponto, ali, entre as águas, é possível que um duende vivaldino, ou outro qualquer pote de arco-íris venha tocar-nos o olhar... E o acorde, serenamente, porque é, alucina-se em todos os sentidos, repercutindo, repercutindo, repercutindo...

vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós

mas não te importes não te importes muito
nós só temos a ver com o presente perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem o estranho verbo nosso

excerto De profundis amamus - Mário Cesariny de Vasconcelos
Saudações aos clans * Até loch!...

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

lembrei-me de novo d'"a menina inclinada" (bd de benoit peeters e françois schuiten; meribérica).

o cesariny era uma espécie de menino inclinado. isto, senti pela primeira vez não ao ler os poemas dele, mas a tradução que fez das "iluminations" do rimbaud - na ed. de 1989 da assírio&alvim, bilingue, senti-me como se estivesse a assistir a uma fusão de galáxias.

é isto que se sente quando olhamos a beleza que escapa dos dicionários, não é? quando a beleza se escapa arrastando na fuga todas as palavras que a quiserem acompanhar.

:)

11/29/2006 01:06:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Perfeito o presente, nem tanto o acorde ou talvez não, talvez uma das inversões de um menor, lá o meu preferido, com a 3ª e a 7ª bemol, para nos dar o swing em blue, blue de preto, blue de blue, afinal o calor, o aconchego de um presente perfeito.

11/29/2006 03:59:00 da tarde  
Blogger T-Regina said...

bizantina,
como a entendo! É essa fusão de galáxias que sinto quando vejo um Modigliani a pintar uma Akhmatova, ou um Bakst a vestir Nijinsky ou um Jorge de Sena a traduzir Cavafys. A beleza escapa-se, explode, transborda... Diria que esse é também o nosso Nilo...;) E muito obrigado pelo seu comentário! Saudações blogosáuricas :)

carlos a.a., (claro que a pterodigitice a que me referi no comentário que deixei nas «ideias soltas» era o post que coloquei depois)
E então não é que me apetece tremendamente reler ana cristina césar?!!! Não sei se conhece este poema dela:

Um Beijo
que tivesse um blue.
isto é
imitasse feliz
a delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha surdamente
no reino expresso
do prazer
Espio sem um ai
as evoluções do teu confronto
à minha sombra
desde a escolha
debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás
de decolagem:
leitor ensurdecido
talvez embevecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
sempre em blue
mas era um blue
feliz
indagando só
"what's new"
uma questão
matriz
desenhada a giz
entre um beijo
e a renúncia intuída
de outro beijo.

Obrigado por aparecer aqui! Saudações t-regínicas :)

11/29/2006 07:20:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ai ai, T-Regina, que vou roubar este poema para o Ideias Soltas...
Muito obrigado. Não conhecia.

Sim eu sei que era para o de cima...

11/30/2006 12:59:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home