20061210

Os jogadores de xadrez

Jogadores de xadrez egípcios, Sir Lawrence Alma-Tadema

Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
tinha não sei qual guerra,
quando a invasão ardia na Cidade
e as mulheres gritavam,
dois jogadores de xadrez jogavam
o seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
o tabuleiro antigo,
e, ao lado de cada um, esperando os seus
momentos mais folgados,
quando havia movido a pedra,
e agora esperava o adversário,
um púcaro com vinho refrescava
sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
as arcas e as paredes,
violadas, as mulheres eram postas
contra os muros caídos,
traspassadas de lanças, as crianças
eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
e longe do seu ruído,
os jogadores de xadrez jogavam
o jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
lhes viessem os gritos,
e, ao refletir, soubessem desde a alma
que por certo as mulheres
e as tenras filhas violadas eram
nessa distância próxima,
inda que, no momento que o pensavam,
uma sombra ligeira
lhes passasse na fronte alheada e vaga,
breve seus olhos calmos
volviam sua atenta confiança
ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
que importa a carne e o osso
das irmãs e das mães e das crianças?
quando a torre não cobre
a retirada da rainha branca,
o saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
ao rei do adversário,
pouco pesa na alma que lá longe
estejam morrendo os filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro,
surja a sanhuda face
dum guerreiro invasor, e breve deva
em sangue ali cair
o jogador solene de xadrez,
o momento antes desse
(é ainda dado ao cálculo dum lance
pra efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
dos grandes indiferentes.

Caiam cidades, sofrm povos, cesse
a liberdade e a vida.
Os havers tranquilos e os avitos
ardem e que se arranquem,
mas quando a guerra os jogos interrompa,
esteja o rei sem xeque,
e o de marfim peão mais avançado
pronto a comprar a torre

Meus irmãos em amarmos Epicuro
e o entendermos mais
de acordo com nós-próprios que com ele,
aprendamos na história
dos calmos jogadores de xadrez
como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
o grave pouco pese,
o natural impulso dos instintos
que ceda ao inútil gozo
(sob a sombra tranqüila do arvoredo)
de jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
tanto vale se é
a glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
como se fosse apenas
a memória de um jogo bem jogado
e uma partida ganha
a um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
a fama como a febre,
o amor cansa, porque é a sério e busca,
a ciência nunca encontra,
e a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
prende a alma toda, mas, perdido, pouco
pesa, pois não é nada
Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
com um púcaro de vinho
ao lado, e atentos só à inútil faina
do jogo do xadrez
mesmo que o jogo seja apenas sonho
e não haja parceiro,
imitemos os persas desta história,
e, enquanto lá fora,
ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
chamam por nós, deixemos
que em vão nos chamem, cada um de nós
sob as sombras amigas
sonhando, ele, os parceiros e o xadrez
a sua indiferença.

Ricardo Reis