20061206

O aroma

Imagem - http://graphics.ucsd.edu/~henrik/papers/smoke/spsmoke.jpg
Como uma fluidez de incenso, quente e aveludado, um travo de sândalo, um traço de verbena, três gotas de citrino e um resplendor de rosa, o óleo exala. A atmosfera carrega-se, a sala contrai-se, as velas atordoam-se momentaneamente e todos os tons se transfiguram. A lareira crepita e por dentro dos ouvidos, como um mantra, ressoa surdamente um ronronar de esferas. Os ocres avermelham-se nas paredes em volta, como se nelas ganhassem vida frescos. Até se ouve o mar e o silêncio é mais cerrado, como se a noite estivesse à espreita. Uma taça enche-se e os gestos tornam-se num murmúrio do próprio ar. Borbulha um pensamento como lava de um vulcão, retida na caldeira. Uma máscara veneziana finge olhar-nos e pressente-se Nit. Devagar, os frescos das paredes revelam cores e formas, talvez uma qualquer espécie de escrita. De uma caixa de madeira retiro três espigas, algum sal, três moedas. Bebo de um só trago o vinho de uma pequena malga. Com a ponta dos dedos, ponho uma gota de óleo na minha testa. Acendo o incensário. Sopro suavemente sobre a água da taça. Sinto nos pés nus o calor da terra. Largo-me dos lastros e deixo de ter pés e braços. São oiros de areia, cintilações de rio e a dor inédita do que não pode ser cumprido. A barca partiu cedo demais. E o peso inédito chegou demasiado cedo. Mas danço de roda e toda eu sou cores e muitas vidas. Escorro pelas paredes e entorno-me pelas formas que parecem uma escrita e já não se podem ler. Lá fora, o trânsito precipita-se pelos semáforos. Acorda um livro de Borges no meu colo. Há um aroma bom na sala... Levanto-me para acender as luzes. Como anoiteceu tão cedo hoje!...

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

a profusão de elementos remete para a depuração dos sentidos interiores.

não existe um só caminho, pois não?

um grande abraço :)

12/06/2006 11:26:00 da tarde  
Blogger T-Regina said...

Olá bizantina :)
Li a sua pergunta como se a visse de braços cruzados sobre a secretária, uma caneta entre os dedos a tocar no queixo e, meio a sorrir, pensando alto com os olhos a fitar um para-além-de-qualquer-coisa :) Mas nestas confidencialidades, atrevo-me a dizer-lhe o que penso - e penso que há de facto um só caminho e inúmeras estações e incontáveis paisagens. E, nesta minha maneira de ver, o caminho só é único porque exclusivamente individual. O Antonio Machado sabia mesmo muito quando dizia 'caminante, no hay camino, se hace Camino al andar' - (a utilização de minúsculas e maiúsculas é minha, como já percebeu:))
Obrigado pelo seu comentário e um T-Regínico abraço! :)

12/07/2006 03:26:00 da tarde  

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