20061130

Para onde?

Carlos Drummond de Andrade

www.geocities.com/Athens/Styx/2607/drumond.jpg


Por tanta coisa que vai acontecendo, por coisas que se lêem aqui e aqui, faz cada vez mais sentido recordar as palavras de Carlos Drummond de Andrade, fugindo, de preferência, à tentação do seu alcance mais imediato...
José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

20061129

Mansidões e desassossegos

Lua e Umewaka, Ogata Gekko
No Retrato talvez saudoso da menina insular, a Natália começa assim: Tinha o tamanho da praia, o corpo era de areia e ele próprio era o início do mar que continuava... Senti um sussurro, como se a memória tivesse dons de búzio que se encosta ao ouvido para sentirmos o fragor de ondas antigas. Lembrei-me das praias da minha infância, dessa infância em que ainda não tinhamos escamas nos olhos nem o serôdio trabalho de tirá-las (talvez por isso os velhos estejam mais próximos das crianças...) e o fascínio de uma onda nos ocupava o olhar inteiro, na gulodice sã de querer tocar na linha do horizonte. A lua brincava connosco às escondidas, mas nessa altura não sabíamos nem de símbolos nem de astronomias e só ansiávamos pelos equinócios porque um avô ou uma tia prometiam levar-nos a ver as marés vivas nos seus alucinados malabarismos de espuma nas grutas de uma praia. Mansidões e desassossegos. Descubro que guardo em mim um búzio onde, em dias de lua nova, me expando no silêncio e, em dias de lua cheia, posso ainda continuar-me mar. Hummm... Bom cheiro a maresia. Até loch!



20061128

«Ai que me dói o brio!»

Já há uns dias largos que numa estação qualquer de metro blogosférico, ouvi falar que estavam a decorrer umas provas de atletismo dos blogs. Hoje, a propósito disto e disto, voltei a sentir uma espécie de sobressalto pterodígito e, vai daí, não fui de modas, vesti o equipamento adequado e vim ginasticar o carpo e o metacarpo e dar aulinhas de dança aos dedos, para preservar a saúde, claro está. Porque, que me perdoem as muitas e muito doutas opiniões blogosféricas, é de saúde que se trata, ou da falta dela, que ainda não percebi - que, até na blogosfera, andamos de brio doente, fragilzinho, empalidecido e manco, a esvair-se na falta de um reconhecimento injectável, de umas pastilhas de conforto solúvel em opinião pública, de um xaropezinho de estatuto com mel, seja de que laboratório for... Não sei se nas provas entram as de estafetas, mas isso também é pormenor. Os mais, os melhores serão votados com uma sabedoria que levará, de acordo com o regulamento, à eleição, segundo as categorias previstas. Ou então, como todos sabemos que gostos não se discutem, a ideia é mesmo de um tremendo humor e dará origem a qualquer coisa chamada 'Bloga-te e ri' ou mesmo 'Ai que me dói o brio'. Para já, para já, pelo sim pelo não, já estou de consulta marcada para o meu, que esta história da prevenção tem muito que se lhe diga! ;) Até loch!

Presente perfeito ( ou «Um acorde»)

Le Musicien, Claude Noël
Fiquei a acenar do cais com uma metáfora de lenço talvez branco, talvez sem cor, sentindo o zarpar da nau Mário Cesariny de Vasconcelos. Entre pensamentos, misturaram-se brumas e estaleiros de palavras. E para meu espanto, serenamente... Através de uma presença Bizantina detive-me a calcorrear sem pressas por uma cidade invisível e um acorde, que por ali revolteava, veio pousar no meu ombro. Pressenti-lhe uma sugestão na lancinância do voo - de violoncelo ou de saxofone... - e um salpico de cor, tão lúcido e meta-real como uma ideia que se solta... Roça-nos o rosto um sopro de swing, uma volúpia de jazz, uma irreverência mozartina, uma palavra amiga escapulida pelas frestras das esferas. Também pode dar-se que, se nos sentarmos a olhar para aquele ponto, ali, entre as águas, é possível que um duende vivaldino, ou outro qualquer pote de arco-íris venha tocar-nos o olhar... E o acorde, serenamente, porque é, alucina-se em todos os sentidos, repercutindo, repercutindo, repercutindo...

vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós

mas não te importes não te importes muito
nós só temos a ver com o presente perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem o estranho verbo nosso

excerto De profundis amamus - Mário Cesariny de Vasconcelos
Saudações aos clans * Até loch!...

20061126

A propósito de guardiãs...

Foto: Alan L. Bauer 'spider web with dew'
Tecelã e caçadora evoca-me a deusa egípcia Nit, mãe de Ra. Consta que nas festas dedicadas a Isis-Nit havia a tradição de deixar as lamparinas acesas durante toda a noite. Nit era tida como a protectora de Osíris, tecelã das mortalhas e guardiã contra o mal. Associada às águas, criadora do nascimento, passou a ser considerada como o deus criador feminino, pai e mãe de todos os deuses. Nit era apresentada como 'tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será'. Platão associou-a a Athena, que transformou a Arachne numa tecelã caçadora como a da imagem. De qualquer modo, gosto do símbolo - e o orvalho é sempre uma profusa jóia para qualquer teia. Bom domingo, até loch!

20061124

Um pouco mais de azul...

deepcovemarina.com/images/Deep%20Cove/deepcov...
Hoje, ao contrário do Mário de Sá Carneiro, não me apetece de todo dizer que 'um pouco mais de sol - eu era brasa; um pouco mais de azul - eu era além'. Não. Hoje não. Hoje apetece-me dizer, com irreverência e um estranho sentido de mimzinha, que um pouco mais de azul e sou além. É isso mesmo: hoje não me apetecem golpes de asa falhados, mesmo que não consiga mais do que a elegância desconjuntada de um albatroz. E, para além de tudo o mais, hoje é outra vez sexta-feira - vi-me ao espelho e tenho a alma musculada de tanta prática no dojo e é óbvio que seja qual for a vestimenta, terei de dedicar-me a alargar costuras ou a inventar roupas novas, que as anteriores, por acanhadas e gastas, se insistir em usá-las como estão, vão esgarçar de vez. Portanto, tenho um intervalo técnico de fim de semana na musculação e vou estar azul e além em mim e deixar jorrar as fontes todas. A minha gata deita-me aquele olhar agarotado de verde, fica convencida que desta é que é irremediável e levanta as orelhas para perceber se o meu riso é digno do seu susto. Claro que é preciso notar que hoje me exilo completamente no loch... obviamente! Bom fim de semana, bom loch! ;)

20061121

Suspiros de Alice

Cheguei à conclusão de que é preciso virar o mundo do avesso... Sim, sem preocupação com as mangas, nem com o arrepanhado dos forros, quanto mais das entretelas, que, aliás, já nem se usam.

Houve uma época, de marulhares discretos de linhos. Outra, em que o restolhar que se ouvia era o dos brocados, pesados e barrocos, a fazerem de música de fundo em salões, onde para além das alcovas de diz-que-disse, vilanagem e perversão e das esconsices das misérias – misérias a sério, daquelas que deixam pústulas de fome, peste e desvairado desvio -, as conversas também fluíam com substância de ideias e havia aventuras de conquista a inspirar os neurónios menos entalados na obsessão engavetada dos domínios. Depois alternavam-se os tafetás, as ambiguidades de brilho colorido e o resfolego cansativo e abrumador das poses, com os adamascados estirados pelas paredes, pelos sofás, pelas camas, pelas mesas e janelas, com as sedas, em que se atirava para a cave a aspereza do labor, usando-as escorregadias e fáceis, e com os veludos de aconchego morno, um tanto delicodoce, um tanto deliconobre, um tanto delicomanso. E tudo restolhava em maior ou menor surdina, abafando à vista, ao tacto, ao olfacto e ao ouvido os pululantes insectos esotéricos e exotéricos e outros elementos de incómodo similar. Depois, noutras épocas passámos pelas chitas, pelas gangas, pelo terylenes, pelos poliesteres, pelas licras, adaptando as orelhas aos novos sururus, ainda que deixando os outros sentidos no continuado ensaio, e, cada vez mais entalados, de tão ébrios de domínios, passámos a acreditar que somos todos donos uns dos outros e que nos levamos de trela e açaimo no esplendor de uma qualquer ideia, cuja essência, coitada, já se perdeu pelas gavetas. Curiosa e paradoxalmente vamos inchando e minguando...

(Sem me dar conta, um suspiro igual ao da Alice no País das Maravilhas: It was much pleasanter at home, when one wasn't always growing larger and smaller, and being ordered about by mice and rabbits.)

Pois é... o descanso que não seria se virássemos mesmo o mundo do avesso!...

20061120

Semana de Sete Tons

Rodando nesta Coisa circular que é o tempo, nesta Coisa circular que é o planeta, o sistema, o universo, a vida... Rodamos. E neste primeiro dia da semana a que chamamos segundo, porque preferimos descansar primeiro e trabalhar depois, quiçá trocando a obrigação pela devoção, até podemos lembrar-nos da Roda da Fortuna, sentir-nos motivados e renovados por ela, vê-la como promissora mensageira de boas novas que nos ajuda a retirar dos ombros os pesos que nos ofuscam na sua ambiguidade, e num arremesso de ousadia cantar as Carmina e dizer-lhes, aos pesos da Fortuna Imperatrix Mundi, e sentinunc per ludum dorsum nudum fero tui sceleris, que é como quem diz que voltamos engenhosamente as costas à sua opressão. Porque nesta roda, é hora de águas novas e a semana pode fazer jus à sua declinação e até alcançar a harmonia das sete notas, o equilíbrio dos sete astros, a plenitude das sete ciências. Bom dia! Boa setimana! Boa roda! Até loch.

20061119

Simone com S

Mulher com margarida, Mucha
Ontrem saí do loch e fui ver as Conversas de Camarim ao São Luiz. Antecipava um serão bem passado, porque sempre achei que tanto a Simone como o Victor de Sousa devem ter um qualquer parentesco genético com o Vinho do Porto... Mas foi, de facto, mais, francamente mais do que isso. O Victor de Sousa actor e declamador de poesia, eu já conhecia. Agora não estava à espera dessa sua outra faceta absolutamente deliciosa e divertida, onde nos brinda com o improviso, o humor e a maleabilidade de um óptimo contador de histórias. E, claro, em conversa com a Simone...

Pode muito bem haver algum segredo fechado nos nomes de cada um... Há os que julgam que sim e há os que acham que não. Ao contrário do Haroldo de Campos no poema 'Circuladô di Fulô', eu prefiro o sim. Aí estou mais em sintonia com o Isaac Asimov naquele conto dos '9 Amanhãs' - Escreva o seu nome com um S- o que também não deixa de ser uma coincidência... Consta que o nome Simone se origina no hebraico Shimeon, que se aportuguesou para Simão e Simeão, com esta variante feminina, que significa aquele que escuta Deus, segundo uns, ou aquele que Deus escuta, segundo outros. Não é um nome muito vulgar. Porém, vieram-me logo à mente algumas Simones: Simone Weil, a filósofa, Simone Signoret, a actriz, Simone Veil, a política, Simone de Beauvoir, a escritora, Nina Simone, a cantora, Simone Bittencourt de Oliveira, também cantora... E esta nossa Simone.

Uma Simone que continua a entregar-se, como se os anos e o percurso vivido não lhe tivessem sussurrado ao ouvido que, talvez, devesse proteger-se um pouco; uma Simone que explode no palco como um fauno, com uma dignidade e uma beleza que já se tornaram tão proverbiais como a sua frontalidade; uma Simone que encontra registos algo novos na voz e que ontem me evocou a Barbara, essa aigle noire que nos dizia que eramos a sua melhor e mais bela história de amor...

E depois, entre os dois, foi um desfile bom de poetas e de compositores. Entre outros, David Mourão-Ferreira, José Carlos Ary dos Santos, Joaquim Pessoa, Vasco de Lima Couto, João Villaret, Raul Indipo, Nóbrega e Sousa, Nuno Nazareth Fernandes... Tudo servido no ambiente simpático do jardim de Inverno do São Luiz. Soube bem. Até loch.

20061117

Combóio de corda

Foto: A. Boot
http://static.flickr.com/23/31814253_ffbe363d44_o.jpg

Porque li hoje aqui um texto de Fernando Pessoa, porque a escrita de Fernando Pessoa e dos seus outros rostos é sempre incrivelmente estimulante, como, aliás notou o autor do post que refiro, porque ando há uma série de dias com vontade de reler o Opiário, de trazer para o loch Os Jogadores de Xadrez, porque hoje tenho na cabeça imagens de recomeços, de travessuras, de gestos amplos de sementeira, de livros que se arrumam, de caminhos que se abrem, de datas no topo das páginas, de proas a rasgar águas, de viagens e de horizontes, reli a Autopsicografia, a tal que começa por dizer-nos que o poeta é um fingidor e que termina constatando

«E assim nas calhas de roda
gira a entreter a razão
esse combóio de corda
que se chama coração
»

... apeteceu-me glosar:

e gira num rodopio
fazendo por se entreter.
Mas se algum mal suceder,
não diga 'a corda partiu!'.
Mais vale seguir fingindo
que a dor nisso não se atenta.
Aliás, até se alenta
com o som da corda partindo.
Mas se é desta incongruência
que o poeta vive e sonha,
não há quem siso lhe ponha
nem tire clarividência.
Fingidor de si consigo,
que os outros são só um espelho
onde se vê novo e velho,
mas sempre de si cativo.

Boa viagem. Até loch.

20061116

Qualquer dia, em que estando eu falha de paciência, alguém se sentar na confiança de me colar mais auto-colantes, de me imprimir carimbos e etiquetas, por mor do que lhe diz a experiência ou o seu domínio e posse da verdade, levará a surpresa de me ver exibindo na testa com vaidade esta legenda de verdadeira eloquência: ‘é proibido afixar (mais) anúncios nesta propriedade’.

20061114

Patroa e Criada, Vermeer
Não há nada a fazer... Fico sempre completamente rendida perante qualquer obra deVermeer. Não é só a luz e a cor, o equilíbrio, o pormenor. É, creio que muito especialmente, aquela sua maneira de cativar um momento na tela, como se tivesse apanhado qualquer coisa a suceder entre coisas com uma naturalidade que me dá sempre a sensação de não ser a pessoa que observa a tela mas sim alguém que está presente na cena. Um regalo para a vista e não só. Ainda mais ao fim de um dia onde o cansaço, como uma trepadeira, se me enroscou encaracoladamente e estou a inventar-me a melhor forma de o destrançar. Começando assim, parece que vou bem encaminhada... Até loch!

20061113

Os dias de Sisifo...

Sisifo, Ticiano

Ahhhhhhhhhh! Ou levo isto a rir ou fico-me no esforço inútil de lutar contra marés, de ir buscar forças onde não as tenho, de repetir- me vezes sem conta que uma pessoa é mais do que as suas circunstâncias! Apesar de muita circunstância 'sue-ellenesca' da minha vida ( isto para quem se lembrar de Sue Ellen, a tétrica personagem da não menos tétrica série Dallas, de há 74856 anos atrás, a quem tudo acontecia), não tenho por hábito entrar em depressão mas... macacos me mordam se não sinto de quando em vez um certo complexo ou síndrome de Sisifo! Por sorte, a minha concepção cosmogónica não se identifica particularmente com a dos Gregos, mas, como diria o outro... que las hay, las hay! E há dias assim, em que nem a vetusta idade me dá nem sabedoria nem paciência, antes pelo contrário! E hoje, apesar de estar há não sei quantas horas a olhar para aquela prenda fabulosa que é um anel que trago ao peito com a mágica frase «Isto também passará», a única coisa que consegui foi este apetite desmesurado por dar três bons gritos, daqueles que nem a passagem do combóio emudece, e dizer ao mundo que estou farta! Ahhhhhhhhhhhh! que nacinha esta!

Para quem não conhecer a história do anel, (e outras) aqui vai:

He said:
'I do not know the cause, but something impels me to seek a certain ring, one that will enable me to stabilize my state.

'I must have such a ring. And this ring must be one which, when I am unhappy, will make me joyful. At the same time, if I am happy and look upon it, I must be made sad.'

The wise men consulted one another, and threw themselves into deep contemplation, and finally they came to a decision as to the character of this ring which would suit their king.

The ring which they devised was one upon which was inscribed the legend:

This, too, will pass. (in The Way of the Sufi, Idries Shah)


20061112

A importância das pequenas coisas

A rendeira, Vermeer
A renda de bilros... minucioso afã de dedos ágeis como adejar de colibri, colhidos num momento que para sempre se imobilizou no tempo. Poderia ser uma mulher de Peniche, onde as rendas de bilros alcançaram uma tal perfeição que para muitos passaram a ser conhecidas como rendas da praia, apropriando-se do nome da terra. E lembrei-me desta maravilha de Vermeer porque, ao jantar, a conversa também fluiu, quase tão ágil como as mãos dessas rendeiras e demos connosco a falar da importância das pequenas coisas - o gesto de impaciência de um no momento de urgência de outro, a simultaneidade de um pormenor que faz 'ganhar' o dia, o comentário atento, apesar de casual, que provará ser determinante... E sendo a vida feita de miríades de pequenas coisas, como pequenos entrançados de fios no gesto certo da rendeira , manobrando entre alfinetes no itinerário da sua almofada, possamos nós, como ela e apesar de tudo, fazer renda digna de tal nome. Até loch!

Histórias de gente boa

Imagem: http://www.stjohnsbotanicals.com/images/chestnuts-softedge.jpg
Conta a lenda que há quase 1700 anos devemos estes dias de sol travesso e temperatura estival à bondade de São Martinho. Mas tão ligada está à tradição ao calendário agrícola e às festas dos campos, com os 'magustos' antigos a reunir as gentes em volta das grandes fogueiras, onde o crepitar do fogo se alegrava com o estoirar das castanhas, e os jarros do vinho novo andavam num revirote de festa, que muito desconfio que tenha sido esta mais uma maneira que o povo engendrou de prolongar as celebrações celtas do Sahmain. E em boa hora, que ética e natureza sempre gostaram de andar de mãos dadas no coração da gente boa. Já não se usa dizer estas coisas, eu sei, mas sabe bem dizê-las e saber que podem ser ditas em verdade. Um bom Verão de São Martinho. Até loch...

20061111

De funambulismos e guarda-chuvas ou, mais apropriadamente, do arame...

Imagem: http://questiondepoids.mabulle.com/
Dizia o João Cabral de Mello Neto ao Carlos Drummond de Andrade que «não há guarda-chuva contra o poema» e o José Carlos Ary dos Santos respondeu-lhe que «para o poeta que chova por dentro, em razão inversa, forçoso é ter guarda-chuva contra a palavra perversa que foi um chão que deu uva e hoje só dá conversa». Estava eu a rebuscar o bolso do avental à procura dos cigarros, quando me saltou lá de dentro um pequeno guarda-chuva, daqueles coloridos e até gentis com que se amansam os sabores mais acres que nos cabem na taça. Pousei-o, fiquei a olhar para ele enquanto acendi ritualmente o cigarro, hesitante entre o deliciar-me com a sua articulação, a minúcia dos pormenores, a delicadeza do trabalho e o rir com o humor da sua enganosa inutilidade. Só depois me apercebi que a questão não residia no guarda-chuva...

20061110

Panem et circencis ... sed ubi panis?

O Circo, Marc Chagall
Pois hoje, depois de tudo o que vi, ouvi, li e analisei, a constatação foi simples: Circo, já temos!
Até loch...

20061109

Refogados

Natureza Morta com Cebolas e uma Garrafa, Paul Cezanne
Mistério que não vou conseguir resolver: por que tem tudo de ser como as cebolas? - mantos e mantos dispensáveis que resguardam um núcleo tenro e sumarento e sempre se nos irritam os olhos no caminho entre uns e outro. Alguém mais apto para as prendas domésticas me dirá que se passar o fruto por água evitarei a irritação da vista. O problema, geralmente, é que na falta de água com que lavar a cebola, acabam sempre por ser os olhos a entrar num processo de auto-lavagem em águas próprias. Talvez por isso a garrafa na tela. Resta só saber se será de água...

20061108

Olarias...

Uma aventura talhada no bisel dos dias. Uma escultura em movimento que se pretende cada vez mais obra-prima e onde não se querem burilados casuais. Homem ou mulher segundo as sinfonas que o Andrógino dirige ou o Hermafrodita compõe, nesta mistura estranha de vinho, sangue, néctar e água. Num pote fechado, a mirra. E num outro o incenso. Ou a mirra e o incenso num mesmo pote fechado. Ou a aparência da mirra e do incenso no pó quase invisível do ouro, numa ilusão de pote talvez fechado? -- Ay Deus, e u hé? Mas sempre esta aventura em que olho para trás e vejo com o pormenor e a nostalgia do desprendimento o que já foi e em que olho para diante e sem pormenor pressinto a cor dos momentos por colher. Sempre no mesmo desconcerto, vou nas barcas. Vou nas barcas deste Nilo ou nos bergantins destoutro Tejo. Acordo pela noite as redes na fragata, desfraldo uma vela, seguro-me a um mastro e até tomo um champagne na cadeira de um deck. Apanho o cabelo despropositadamente e deixo crescer as unhas para poder brincar com elas. Uso os olhos e as mãos e o resto do meu corpo e vou, conforme o tempo e a embarcação. Alexandria, Cairo, Ulissipo e Ur. E, se me apetecer, porque não Agra, Atenas ou Memphis ou Amarna, ou mesmo Camelot, Samarkhand, Jerusalém, salém, salaam, shalom... Uma reviravolta de gostos, de rostos e de gestos. Um passo de magia que, proavelmente só vou entender quando chegar à próxima estação... Até loch!...
(P.S.:Um sentido afago a todo o meu clan...)

Imagens:
bdhp.moravian.edu/art/needlework/mourning.jpg e www.thesacredfeminine.com

20061107

De nojo...

Foto: www.digitalreflections.biz/galleries4/nature/images/
A propósito das coisas que tenho lido e ouvido não só na comunicação social mas também aqui e aqui, e sem resistir a um comentário a aqui, quando olho para este nosso mundo, o que me parece de uma exorbitante gravidade é o facto de (e adoptemos o ar impenetrável e intelectualóide que quisermos!) não considerarmos impossíveis todas as teorias de conspiração e todas as conjecturas sobre agendas paralelas. Por um lado, umas e outras parecem nascer de perguntas tão simples e legítimas que lhes conferem matéria-prima para se desenvolverem, e, por outro, com a Ética emigrada sabe-se lá para que confins galácticos, desabituados que estamos da probidade dos governantes, alheios como andam do sentido de Estado, quanto mais de Nação, acabamos por, com uma desafectada displicência, considerá-los imputáveis de todas as urdiduras – e consentimos. Há séculos. Pior, ainda. Gostamos de vestir ares paternalistas falando de evolução e de mundo civilizado, porque hoje achamos, como método, que uma corda é mais repugnante à nossa sensibilidade humanista do que a electricidade e do que a injecção letal; porque hoje nos dissolvemos na gama de cinzentos das interpretações da Justiça e do Direito; porque nos acostumamos a reconhecer legitimidade e ilegitimidade, de acordo com cartilhas que já nem sabemos questionar; porque ganhamos pruridos semânticos e nos ufanamos em debates umbiguistas, e a dignidade de uns e de outros só toma alguma voz quando nos toca a vez de pertencer ao lado que não vai contar a história. E, ainda mais curiosamente, da compreensão pela História passa-se à justificação pela História, onde nunca se registam as histórias, múltiplas, entrançadas, enviesadas, que lhe fazem de chão. Gosto daquele termo que hoje só usamos para significar repulsa e asco, mas que, antigamente se usava para exprimir náusea, repulsão, pesar e luto, porque é isso que sinto: nojo.

20061106

Chove em Delphos

Imagem: http://crystalinks.com/delphi.html
A chuva cansa-me. Cola-se, dando às texturas uma flacidez impertinente, uma sensação pantanosa, um risco de esboroamento. Entranha-se - e é um incómodo doentio que me obriga ao esforço, às vezes exagerado de tão inoportuno, de absorvê-la toda para conseguir alhear-me de que existe. Nunca sei se a engulo ou se me deixo engolir por ela. Atravesso a rua, apressando o passo, tentando deixar rapidamente para trás a bátega mais forte. Mais rapidamente ainda me apercebo da inutilidade. Ou me torno bátega e chuva ou nunca conseguirei escapar-me dela, deixar de reconhecer-lhe existência. Então, apresso o passo só pelo prazer da corrida e do ar no rosto. Entro na tabacaria, peço os habituais dois maços de sg filtro e, sem querer, lembro-me do Esteves. E fico com uma imensa vontade de comer chocolates. E sei que me apetece chegar depressa a casa, sentar-me na cadeira onde vou acender e fumar o meu cigarro e, cheia de pressa, pegar na água toda que trago em mim e moldar com ela uma esfinge que me guarde de mim própria. Deixo passar a procissão e os simulacros ao largo, como se fossem eléctricos amarelos, românticos e lentos. A Andaluzia não me arde nas paredes mas por dentro dos olhos. Por hoje, já sem chuva. Até loch.

20061105

Tantos sábios nesta Atenas...

A Escola de Atenas de Rafael
Passei o fim da tarde a actualizar-me quanto ao que se vai escrevendo na blogosfera. Muito do que li suscita-me uma pergunta irremediável: Com tantos sábios nesta Atenas, com tantos estrategas e visionários, por que razão andamos todos a sentir-nos não mal? Claro que sábios - sábios! - mas, em certos não menos doutos casos, com um verdadeiro sentido do lazer a matizar lutas de galos em que qualquer crista que se preze tem de se levar rubramente a sério. Fiquei, por exemplo, a saber que agora o pesudonimato da blogosfera é coisa feia, de gente viciosa e sem carácter - digo eu, para evitar exercer um talvez direito de citação, que isto agora deixou-me muito, mas mesmo muito baralhada! Também fiquei a saber que é de bom tom moral justificar-se muito e muito bem o não-pseudonimato e que também é de bom tom arranjar boas causas maiores, daquelas com nomes grandes, que justifiquem amplamente as maleitas paridas em diz-que-disse de origem esconsa. Para além de ter ficado pasma com tantas sapiências, fiquei supinamente satisfeita por me aperceber que outros, sentados em sedes mais terrenas (daquelas que não precisam dos vernizes) mantêm essas humanas qualidades de chorar, rir e achar que a proporção é mesmo uma arte real. Até loch!


Sem fio e com rede


Se no nosso coração o espaço contasse, eu precisava neste momento de um diâmetro cardíaco de cerca de oito mil kilómetros. Mas hoje em dia, temos a benesse de poder enganar a nostalgia e as lonjuras das mais variadas maneiras, podendo ouvir, falar, ver, escrever em directo e mimando os nossos afectos nessa proximidade que nos serve conforto à alma através de alguns dos nossos sentidos. As últimas vinte e quatro horas, passei-as nesses enganos de alma, que a fortuna (a prosaica) não deixa durar muito :) Mas o bem que souberam essas várias incursões sem fio, umas, com rede, outras, apesar dos fios que nos ligam e do sem-rede da espontaneidade...! Até loch.

Imagem: www.worldfactsandfigures.com/maps/802802

20061104

Casulos...













A propósito de micro e macro-cosmos e de casulos...

Fotos: http://astro.fdst.hr/galerija.php?izbor=Galerija/&pg=3
http://www.lucianabartolini.net/Immagini/ragni/altri/cocoon-di-ragnetto.jpg


I - O Mago...

Já Fernando Pessoa dizia: ‘Tudo é símbolo’ e, eu, pela minha t-regínica parte, no universo imenso dos símbolos, aprecio as cartas de Tarot. E gosto logo da que se revela como I Arcano Maior – o Mago. O Mago, como aquele que se prepara para iniciar a sua obra, para veicular a ideia até à manifestação, está em sintonia com o seu ambiente, intermediando céu e terra, sabendo qual o seu local de trabalho e tendo consigo as ferramentas necessárias. Os pés bem assentes no chão, o símbolo do infinito sobre a

cabeça, pode ser a iluminura inspiradora de qualquer início de capítulo. Apesar de O Astrónomo, de Vermeer, tanto quanto sei, não fazer parte de nenhum baralho de tarot, tem tantos condimentos aliciantes que não resisti a trazê-lo para o loch, neste vogar entre micro e macro-cosmos que somos, nestas viagens ou torna-viagens que navegamos, celebrando um novo ciclo. Até loch…

20061103

É sexta-feira!...

Cinzentos atirados para a cave!
Ah!... que bem me sabe chegar ao loch, depois de um dia a barbatanear por aí! E tirando partido da provecta idade, que me oferece - finalmente! - algumas prerrogativas, preparei o meu whisky, acendi o meu cigarro e sentei-me numa confortável cadeira de balouço: fim de tarde de sexta-feira! O que quer dizer que, muito fleumaticamente, vou poder dar-me o luxo de mandar directamente para a cave uma data de coisas cinzentas e fazer mesmo de conta que não existem até... segunda-feira! Hummm... E o que me apetece fazer deste fim de semana? Boa pergunta!, que o que me apetecia mesmo não tinha muito a ver com o tempinho limitado de um fim de semana... era mais uma viagem no velho Expresso do Oriente, com conversas interessantes no vagão restaurante e regateios de loucos com os perfumistas de um soukh! Altero o cenário, fico na expectativa de conversas perfumadas, troco os regateios pelo meu marralhar com as lidas da casa e, muito possivelmente, apanho o trem do Amadeo Souza-Cardoso na gare da Gulbenkian. Para já, para já, o loch sabe muto bem... Até loch!

20061102

De verde, como as árvores!

Consta que os verdes pacificam, iluminam, principalmente quando brotam, frescos, quase citrínicos, como ouros a cintilar pelos orvalhos da manhã ou pelas chuvas, e rasgam como uma gargalhada de criança os cinzento dos nossos dias. Outros, mais circunspectos e intensos, acendem-se num que outro fulgor de prata, altivos na sua discreção, reais na pose, ainda que maternos como um manto. Uns acastanham-se, outros avermelham-se, outros esbranquiçam. Mas sempre pacificam. Distraidamente, hoje vesti-me de cinzento quando deveria ter-me vestido de verde... Vou compensar e vestir por dentro um salgueiro-chorão, uma amendoeira, uma avelaneira, uma acácia e um carvalho. E depois, que ninguém se admire se eu me esquecer do vento suão (o tal que 'faz febre, amarela os ossos, dói nos peitos sufocados'...) e andar a saltar pelo loch a cantar cada 'raminho novo'! Pois é, vou alhear-me de tanto 'vento que anda e desanda e sarabanda e ciranda' e, muito simplesmente, sossegar-me. Até loch...

20061101

A avó do soldado Adriano...

Desculpem-me o desabafo, mas não resisto. A avó do soldado Adriano, que integra o grupo de militares que seguiu hoje para o Líbano, país que a avó Margarida nem sabe onde fica, porque o neto é muito reservado, mas o orgulho do pai (‘em cem há um como ele’), ocupou alguns minutos, creio que como 2ª notícia de abertura do jornal nacional das 20:00 da RTP 1. Alguém que me explique o que se entende por noticiário, por um lado, e por que é preciso tanta espuma a almofadá-lo apenas com a finalidade de nos entediar e entelenovelar durante uns estiradamente tristes 60 minutos... Que me desculpe a avó do soldado Adriano, com todo o carinho e solidariedade que todas as amantíssimas avós me merecem, mas o despropósito, a somar-se a tantos outros, parece-me tão entediante e repetido nestes canais de televisão que, com os meus melhores pensamentos e votos para quantos soldados embarcaram para o Líbano, só posso parafrasear outros soldados e sentir-me realmente FUBAR com tanta mediocridade jornalística...

A ponte japonesa

A ponte japonesa, Monet
Algumas das novas cores e as boas vindas ao loch aos caminhantes que reencontrei ontem e, claro, com um aceno especial ao músico e à sua amada Margarida, que, entre outras coisas me proporcionou ouvir aquelas palavrinhas 'So close no matter how far/Couldn't be much more from the heart/Forever trusting who we are/And nothing else matters', entre outras coisas que, mais do que dos pássaros, me faziam ouvir a voz íntima dos voos. Gostei de encontrar-vos. Boa viagem para os dois :) - Claro que hoje continuei a pensar na desproporção e no poder e a re-realizar a importância da perspectiva e a tentar enxaguar apreensões que não levam a nada depois de cumprirem o seu papel de alerta nas guaritas da nossa lucidez. E esta ponte japonesa torna-se inspiradora, não só porque é bela, mas porque, apesar de ser aparentemente tão frágil, não deixa de ser ponte. Até loch...