20061231

2006 de baínha feita e rematada!

Não que tenha grande influência, mas o certo é que 2006 se finda, enquanto período medido no tempo, e pelo marco que esse final representa enquanto abertura para uma página nova, ciclo novo, ano novo... até que enfim! Apesar da beleza que trouxe, 2006 fica marcado para muitos do meu mundo como um ano que nos chegou já fora do prazo, engrominado, estragadinho, azedo e penoso. A beleza que trouxe, espero que tenhamos a sabedoria para a levar em nós e connosco pelo tempo fora. Quanto às dores e azias que causou, a mesma sabedoria para deixá-las bem rematadas, terminadas, usadas até ao fio, completamente esgotadas, absolutamente cumpridas.

O voto que pretendo deixar ao mundo de todos é que, na impossibilidade de que o mundo se renove, que cada um se renove num não-Poder, num não-Domínio, numa saúde livre e liberta. Uma utopia, claro. Mas, quanto a utopias, estou muito de acordo com o Prof. Agostinho da Silva... O panorama mundial não nos promete guloseimas. Ontem, o dia foi suficientemente escuro para o reconfirmarmos. Por isso mesmo, pelo menos que cada um de nós possa prometer-se um doce para o seu pequeno mundo. Deixar a baínha de 2006 bem rematada e um doce, nem que seja só um, para 2007. Até loch!

20061229

Carta

Minha estimada Clarinha,
De regresso a minha casa, lá deixei a minha mãe em Lisboa, na companhia da Maria Estrela, escorreita e animada. Queira Deus que tanto a Clarinha como todos os seus continuem com o mesmo ânimo que tão gentilíssimamente quiseram que partilhássemos convosco. Até comentou a minha mãe o quanto se sentia remoçada pela boa companhia da sua! Mando-lhe este postalinho para que quebre as névoas próprias da época e sinta um bocado do sol de outras paragens. Afinal, ao contrário do que lhe disse, adio a minha partida por umas semanas. Reuniões com os solicitadores e ultimações de negócios, demoram-me por aqui, mau grado meu, que estes frios me são tenebrosos para o espírito. Penso voltar a Lisboa, por dois ou três dias ainda em Janeiro e espero que tenha a habitual paciência para receber-me. Segue carta para os seus pais. Fico aguardando as suas sempre tão prezadas notícias e entretanto permita-me que lhe expresse os meus melhores votos de saúde e muita felicidade para o ano que vai nascer. Com os afectuosos cumprimentos deste que muito a estima
Luciano

20061228

Contrastes-Complementaridades

Foto: Art & Bonnie Joyce, Holy Berries
Era o ser de olhar duplo, contemplando o reino a que pertence e o seu etéreo...
Teixeira de Pascoaes

20061227

À procura de...Godot?

La Promenade, Renoir
Andei por aí a passear de mão dada com alguns poetas. À procura de qualquer coisa sem saber exactamente o quê. Ouvi os desabafos de Mayakovsky, as outras nuvens do Eugénio de Andrade, as angústias do Régio. Saltitei por entre os sonhos do Octávio Paz e os pesadelos do Sá-Carneiro, mas nada me aquietou. A voz da Adriana Calcanhoto foi uma bela paragem - O Outro - mas ainda não era isso. José Agostinho Baptista, Herberto Helder, Clarice Lispector... segui o passeio, cruzando aqui por um atalho, virando ali entre árvores. Não sei o que procurava, mas o certo é que dei por mim a perceber que tinha encontrado. Também não sei o quê. Nem me preocupo muito em tentar perceber - que estes mistérios de gente têm o seu encanto. De uma laranjeira despropositada chega-me, entretanto, um cheiro, um perfume extravagante a lembrar Godot em todas as suas partículas. E apercebo, mesmo de longe, une fenêtre ouverte, une fenêtre éclairée... :) Até loch.

20061226

Sem ser por arrasto

Mucha, Cloches de Noël et Pâcques
Datas, marcações no tempo. Faz hoje 38 anos que uma lei promulgou a igualdade de direitos políticos do homem e da mulher em Portugal. Faz hoje 15 anos que foi dissolvida a União Soviética. Faz hoje 2 anos que um Tsunami no Índico provocou 220.000 vítimas. Faz hoje anos que alguém morreu e nasceu e se celebram lágrimas e risos. Faz hoje anos que passámos por dias de um idêntico calendário e hoje será uma data que muitos recordarão ao longo dos anos por tudo o que de bom e mau nela acontecer. No meu pequeno mundo, não me apetece que seja só mais um dia. Apetece-me vivê-lo como um dia bom, pulsante, vivo sem ser por arrasto. Até loch.

20061225

Noël 1896, Mucha

20061223

Por causa de távolas menos redondas

Távola Redonda, Winchester
Às vezes, há situações que me deixam o coração com 'pele de galinha'. Como quando estou aqui sentada à beira do loch e me chegam reverberações estridentes de desentendimentos na vizinhança. Tensões, nervosismos, barreiras no ouvir, derrocadas no falar, fissuras no sentir, hálitos cortantes e ares azedos. Isto tudo sobre uma acarinhada toalha bela e ampla, provavelmente corada ao sol e lavada com lixívia para ser mesmo muito branca. As assertividades em salada duvidosa com as agressividades, as auto-estimas num molho translúcido e espesso de auto-defesa e egoísmo - e lá ficam as gotas ácidas dos vinagres e dos limões a corromper a toalha, a arder nos cortes, a apagar velas. Difíceis, as távolas redondas... E, no entanto, são possíveis. Até loch.

20061222

A canjas e mantas de lã :)

Hiver, Mucha
Entre o arrepio do frio e a gargalhada benfazeja do sol que não aquece mas alegra, os formigueiros multiplicam-se em movimento, no habitual corropio de compras, onde só de quando em vez se sente o lampejo da intenção de dar um gosto a realçar esse outro de alívio de um dever cumprido, de uma tarefa feita, de um suspiro de 'já que tinha de ser, está feito!'. É a história do início de todos os Invernos deste pacotinho de tempo em que viajamos. A contabilidade aperta-se nas famílias, apesar do continuado culto das inutilidades. O prazer da reunião mistura-se com a obrigação da reunião e o peso dos solitários começa a manifestar uma densidade maior à medida que as horas correm, só porque se atribuiu um determinado sentido a uma determinada data, e até os mais 'fortes' têm dificuldade em fugir ao estigma. Para outros, o entusiasmo do reencontro é a festa antecipada. São dias em que as distâncias se alongam e em que é preciso acalentar no coração, a canjas de convalescença, colherinha a colherinha, os laçarotes gostosos de todos os afectos e, como se lê aqui, celebrar, também, o estarmos 'juntos' neste lugar de ausência. Começa o Inverno, sim - há que arroupar a alma! :). Até loch.

20061221

Yule, o solstício de Inverno, ou o dia de nascer

Está na hora de acender o lenho! Não só para quebrar o frio mas para celebrar a vida, o calor, o Sol que voltará a nascer depois da noite do dia mais curto do ano, porque o caminho até à Primera começa aqui, porque aqui começa o grande ritual de Deus-Mãe. Está na hora de fazer todas as rodas, fechar ciclos velhos, começar ciclos novos, respeitar a terra e honrar a árvore. Aprontem-se Guardiãs, que o dia comemora-vos! Está na hora!

20061220

Um sótão numa gaveta

À procura já nem sei de quê que a minha neta me pediu, abri a gaveta da escrivaninha onde se guardam tesouros velhos e menos velhos e, com uma alegria de cachorro, de lá saltaram mil memórias de letras embrulhadas, de pequenas obras de arte feitas por mãos mínimas, de recortes recheados de recados alegres, de momentos a preto e branco que o tempo amareleceu, de pagelas de outros tempos ainda com o cheiro dos corredores da escola. Sentei-me a afagar todos aqueles apontamentos de vida, a vê-los desfilar sem os espartilhos do tempo em que ocorreram e deixando-os tornar a acontecer em mim. Não me lembrava que tinha este sótão de maravilhas e mistérios aqui, à distância de um pequeno gesto e é com um imenso gozo que me dou conta como é grande a minha casa e que tenho a minha neta a percorrê-la, divertida e curiosa, fazendo-a sua. Até loch :)

20061219

Papel de embrulho


Imagem: http://www.customlabels4u.com/images-giftwrap/gifts.gif

knock-knock :) Então, se me dão licença, vou entrar na conversa do blog Ideias Soltas. Quanto ao conteúdo do contrato de concessão, poderei achar disparatado ou ajustado, mas isso é problema entre os outorgantes e eles saberão de si. Quanto ao Filipe La Feria, gosto de o ver fazer coisas bem feitas, no âmbito do teatro ligeiro, do musical. Quanto à exploração do Rivoli ter ido a concurso público, enfim, esticando uma certa boa vontade, ainda poderia entender como fase necessária de um planeamento estratégico, que permitisse entretanto a estruturação da autarquia em relação ao papel do teatro enquanto arte e enquanto edifício, precavendo a sua sustentabilidade. O que já tenho uma enorme dificuldade em entender é a insídia dessa coisa a que ultimamente se chama 'cultura light' em lugares e posições que deveriam estar-lhe, digo eu, imunes. E não o estando, não estranhará que a cultura do ligeiro sufoque o que sempre se chamou de cultura, assim mesmo, sem explicação aceitável nem dor de consciência, porque, provavelmente, nem se entende o sufoco. Na entrevista que deu na RTP há dias, o Presidente da Câmara do Porto disse qualquer coisa do género - que quando chegou à CMP, era um corropio impossível de gente a pedir dinheiro e que, portanto, só tinha era de acabar com isso. Quanto às pequenas companhias e associações, se não conseguiam ter mais de 10-20 pessoas como audiência é porque não conseguiam interessar o público, portanto não valia a pena encorajá-las. Como poderão imaginar, fiquei absolutamente esclarecida com a visão que a CMP tem quanto à cultura e às inerentes responsabilidades da Cidade, porque estou convencida de que qualquer ajudante de contabilista do meu antigo merceeiro me apresentaria o mesmo elucidante quadro, já que, como toda a gente sabe, a História sempre nos mostrou como cultura e facturação são sempre contemporâneas - não indo mais longe, quem não recorda os luxos em que viveu e morreu Fernando Pessoa? - Continuando a conversar convosco, parece óbvio que o sistema educativo tem uma responsabilidade e creio que algo começa a ser feito - apesar de tremer só de pensar que poderão ter aproximações às matérias tão estimulantes como as novas TLEBS em relação à língua portuguesa e, consequentemente, ao desenvolvimento do gosto pela literatura. O problema, pelo menos para alguns de nós, é que, entretanto, continuamos a ter de lidar com a falta de certos critérios e de certos conteúdos e a ter de suportar os frufrus destes papéis coloridos e enlaçarados - de que até gostamos, mas... em causa própria. Enfim, a ver vamos onde nos levam as águas deste Rio... Até loch.

20061218

Carta

Caminho no jardim de Giverny, Monet

Caro Luciano,
Retirei-me um pouco mais cedo com a intenção precisa de escrever-lhe, pois, por um feliz acaso, o Horácio e a Maria Violante, que vão amanhã a Lisboa, a compras, têm pensada uma visita à sua mãe e a si, a propósito da quadra, o que mais pertinente torna que lhe enderece estas palavras, sem os transtornos das demoras dos correios. Neste ano, em que tantos tormentos afligiram as nossas casas, por vontade de minha mãe as celebrações não iriam além da ida à Missa do Galo e da presença do Padre Valentim no almoço de dia 25. Mas, sabe-se lá por que artes, o meu pai logrou convencê-la das benesses da celebração da família e da seiva fresca das crianças, mais a mais que tanto os filhos e os netos como os primos de Coimbra já mandaram recado que cá viriam e é ela agora quem se atarefa em preparativos, como se um elixir lhe tivesse retemperado a alma! Como o nosso bom amigo sabe, é sempre um imenso prazer podermos fruir da vossa presença nesta vossa casa e, cela va sans dire, o quanto apreciaríamos que se nos reunissem. Transmita à sua mãezinha que, caso vos pareça oportuno, os meus pais providenciarão a vossa vinda. O Horácio e a Maria Violante estão já instruídos com os pormenores e serão os portadores da vossa ansiada confirmação. Se considerar necessário desdobrar-se em argumentos junto de sua mãe, cá lhe entrego este: soubemos hoje que a avó Maria Pia e a tia Maria da Anunciação vão estar cá! Portanto, caríssimo amigo, como poderá prever, será uma Consoada com doçarias acrescidas. Com os nossos respeitos e afecto, a estima desta sua amiga
Maria Clara

20061216

Ecos

Desdobradamente. Como se deixasse o vestido habitual numa arca antiga e usasse o vestido antigo como se fosse habitual. Os Fedeli d'Amore acenam a sua brisa suave. Algo de Suhrawardi me chega. Vou desdobrando esforçadamente a pedra, desenrolando-me. Até deixar de ser pedra. Até voltar a ser pedra. Música e silêncio... Ecos. Até loch.

A foto que aqui se reproduz está no blog O Arrumário ( http://www.arrumario.blogspot.com/). Uma maravilha, não é?

20061215

Flores, flores e uma chuva miudinha

Há dias assim em que as saudades são como chuva miudinha e começam por salpicar ao de leve, como se não passassem daquele borbulhar de champagne que se sente no nariz. Depois, mal nos apercebemos e já tomaram ares de pulverizador e já afectam a nitidez do olhar. Logo, logo, damos connosco que nem pintos, sem grande jeito para alisar as penas. É então que passamos a desconfiar das canduras da chuva miudinha e pensamos no calor de uma lareira ou de uma cor. Eu pensei em flores com cor de lareira mansa, com cor de areia quente, com cor de casa e, com mimos de ourives e precisões de relojoeiro e suavidades de prestidigitador, fui reunindo flores, flores, flores num grande ramo que quero entregar onde as pontes se estreitam, onde pensamento toca em pensamento e, por um instante, até parece que a saudade foge. Sinto que até os braços se expandem e engulo-me numa ilusão de Gea. Ah flores, flores e chuva miudinha e estes braçados de amor aos que por muito longe que estejam nunca deixam de estar em mim :) Até loch...

20061214

Óleo de fígado de bacalhau

Acabei de ler os desabafos que ecoam hoje na cidade invisível. Desabafos sobre a conversa de surdos que têm sido as reuniões de encarregados de educação com a escola em que a bizantina tem participado e, obviamente, revi as situações e frustrações semelhantes vividas por mim. Continua a ser-me doloroso ver a forma como se abdica da possível alegria do acto educativo e se cobre a lacuna com uma paupérrima manta de simulacros, retalhos velhos, que não dão corda nem à deslocada nostalgia quanto mais à necessária criatividade. E essa inércia que se vai transmitindo a esses principes e princesas pequeninos vai moldando as suas naturezas e, malformando, regando as sementes da desresponsabilização que, mais tarde, se verá a permear a vida do indivíduo e do cidadão adulto, tornando-se no fio condutor da auto-indulgência e da auto-marginalização, pais e mães da medicocridade. Contou anteontem a mesma bizantina como tem levado as filhas a abrirem o olhar para os mestres da pintura através da janela divertida de puzzles em que se dá lugar a absurdos que arrancam gargalhadas enquanto garantem que o olhar fica desperto e atento. Lembrou-me como, há muitos anos, os meus filhos despertaram para a chamada música clássica pelo que se riam, por exemplo, com a história dos patinhos que em certa longa viagem de carro pus o Vivaldi a contar-lhes a propósito de As Quatro Estações. E é esta alegria bem-humorada na aprendizagem e no ensino que continua a não se ver nas escolas. A satisfação da curiosidade intelectual, própria do desenvolvimento das crianças e dos jovens, vai sendo atendida com soluções sitematizadamente dissuasoras como se a inata vontade de saber tivesse de ser punida. Agora, como já não se toma óleo de fígado de bacalhau, damos-lhes a nova TLEB - Terminologia Linguística para o Ensino Básicoe Secundário - justificando-o com argumentos que valham-nos todas as Santas Engrácias! (por alguma razão me lembrei desta que assiste ao Panteão, onde só de mortos se trata.) Andamos a matar criteriosamente o prazer de aprender com uma quantidade de professores que nunca tiveram o prazer de ensinar e com outros que, ainda que resistindo, o perderam à conta de programas e de um status quo nas escolas que acabam por negar o alcance dos objectivos para que foram concebidos. Claro que a aprendizagem implica trabalho e o desenvolvimento de qualidades como a concentração, a disciplina, o rigor e o discernimento. Mas não sendo uma actividade de lazer isso implicará que tem de ser exercida sem prazer, sem a satisfação compensadora da conquista intelectual que leva à insatisfação ainda mais compensadora de prosseguir as conquistas? Estaremos todos de facto sem trabalho desde que a Índia foi descoberta? Pior ainda, sem trabalho e de baixa, obrigados a tomar óleo de fígado de bacalhau? Até loch...

20061212

Outonos

Outono, Malhoa
Vou andando e oiço gulosamente a respiração quebradiça das folhas. Tapete de luxo este, de cobres, de ouros velhos, de outros mais vibrantes, de cascas escurecidas, de bagas, de ramos mínimos. Um que outro alvoroço de asas assinala os pássaros que não vejo. As primeiras estrelas estão quase a acender-se e tudo veste um manto acinzentado. Nem cobres nem ouros. As cores agasalham-se umas nas outras, preparando-se para o aconchego íntimo da noite. Logo, vão ver-se ao espelho nas águas do loch, salpicadas de orvalho, maquilhadas de luz, com cobres e ouros e eu passear-me-ei pela guloseima estaladiça deste Dezembro escorregadio, frio e estreito, arroupada numa lã de cor viva, teimosa de meus passos, e dobrarei as minhas estações. Até loch..

20061211

Bah...

Já sei, já sei, já sei! Que a vida é um sobe e desce e, em dias de sorte, é esse o movimento que faz avançar sobre quaisquer carris. Já sei! Mas hoje apetece-me dizer: Já chega! Já basta! Doem-me os braços de tanto afastar as brumas e de tentar à viva força que o sol entre. Doem-me as mãos. Doem-me as mãos. Parece que entrei num estranho delírio e sou mais uma figura à espera de autor. Cansada de contratempos, cansada de entretempos, cansada de tempos sem Tempo nestes vestidos de exílio. Claro que vou acabar por me enrolar na rabugice e não querer levar-me a sério e fazer de conta que posso deitar fora as cascas todas, deitando mão às sete mil setecentas e setenta e sete boas razões que justificam tanta coisa. Mas até quando? Ah loch, loch... nem tu hoje me és água!

20061210

Os jogadores de xadrez

Jogadores de xadrez egípcios, Sir Lawrence Alma-Tadema

Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
tinha não sei qual guerra,
quando a invasão ardia na Cidade
e as mulheres gritavam,
dois jogadores de xadrez jogavam
o seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
o tabuleiro antigo,
e, ao lado de cada um, esperando os seus
momentos mais folgados,
quando havia movido a pedra,
e agora esperava o adversário,
um púcaro com vinho refrescava
sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
as arcas e as paredes,
violadas, as mulheres eram postas
contra os muros caídos,
traspassadas de lanças, as crianças
eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
e longe do seu ruído,
os jogadores de xadrez jogavam
o jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
lhes viessem os gritos,
e, ao refletir, soubessem desde a alma
que por certo as mulheres
e as tenras filhas violadas eram
nessa distância próxima,
inda que, no momento que o pensavam,
uma sombra ligeira
lhes passasse na fronte alheada e vaga,
breve seus olhos calmos
volviam sua atenta confiança
ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
que importa a carne e o osso
das irmãs e das mães e das crianças?
quando a torre não cobre
a retirada da rainha branca,
o saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
ao rei do adversário,
pouco pesa na alma que lá longe
estejam morrendo os filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro,
surja a sanhuda face
dum guerreiro invasor, e breve deva
em sangue ali cair
o jogador solene de xadrez,
o momento antes desse
(é ainda dado ao cálculo dum lance
pra efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
dos grandes indiferentes.

Caiam cidades, sofrm povos, cesse
a liberdade e a vida.
Os havers tranquilos e os avitos
ardem e que se arranquem,
mas quando a guerra os jogos interrompa,
esteja o rei sem xeque,
e o de marfim peão mais avançado
pronto a comprar a torre

Meus irmãos em amarmos Epicuro
e o entendermos mais
de acordo com nós-próprios que com ele,
aprendamos na história
dos calmos jogadores de xadrez
como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
o grave pouco pese,
o natural impulso dos instintos
que ceda ao inútil gozo
(sob a sombra tranqüila do arvoredo)
de jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
tanto vale se é
a glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
como se fosse apenas
a memória de um jogo bem jogado
e uma partida ganha
a um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
a fama como a febre,
o amor cansa, porque é a sério e busca,
a ciência nunca encontra,
e a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
prende a alma toda, mas, perdido, pouco
pesa, pois não é nada
Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
com um púcaro de vinho
ao lado, e atentos só à inútil faina
do jogo do xadrez
mesmo que o jogo seja apenas sonho
e não haja parceiro,
imitemos os persas desta história,
e, enquanto lá fora,
ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
chamam por nós, deixemos
que em vão nos chamem, cada um de nós
sob as sombras amigas
sonhando, ele, os parceiros e o xadrez
a sua indiferença.

Ricardo Reis

20061209

À amizade!

Shishikiban Carp and Wisperia, Ogata Gekko

Sentei-me à beira do loch a ver a dança dos peixes enquanto ia revendo momentos da seroada de ontem, da boa conversa recheada pelos travos animados da recente visita ao Brasil de uma amiga; da preocupação por uma outra que sofreu um segundo avc; dos picantinhos deste e daquele comentário a malquerenças de estimação em certos meios; do trazer para a mesa, não só as saudades, mas, principalmente, a presença dos que, por sua vez, estão de viagem; uma pitada de história, uma outra de literatura, um roçar agastado pelas novidades da política; e - isso mais que tudo! - mãos e mãos cheias de uma amizade generosa e sensível. Quando os meus filhos nasceram, olhei para aqueles escassos meios-metros de gente e pedi que um dia, para além dos maravilhosos laços de mãe e filhos, pudessemos ser amigos , escolher-nos como amigos. E talvez isto diga o quanto é para mim tão imensamente importante a Amizade. Olho a contradança dos peixes e ergo o pensamento, feito taça, num brinde grato - à amizade e aos meus amigos. Até loch.

20061207

Maresia

Lesley Pike, glass engraver, crystal work bowl of sea
«Vem, asa de gaivota, e desenha o que puderes. O céu só tem a cor dos dias que compuseres e se é azul, vermelho, a roxo cintilado, depende tão-só do rastro, do esquisso, de um voto alado que possas enfeitiçar, desenhar, cumprir no ar. Vem, asa de gaivota, e desenha o que puderes, que neste céu já não há nem sequer saber. Entre o viver e o morrer é tudo um recomeçar, um ir devagar, um evitar morrer, um desenhar que se possa. Vem, asa de gaivota, canta, lança-te sem medo, sem mistério nem segredo, sem quereres saber o fim. Desenha-te só assim sem perguntas nem respostas. Não importa se entendes nem sequer se é o que gostas: És asa, voa desvoa, mas segue sem te deteres.
Vem, asa de gaivota, e desenha o que puderes!...»

Margarida Santiago

Um apetite de asa, de mar, de céu, de voo, de abrir janels grandes, de retirar reposteiros, de ver as espumas delirantemente brancas a encaracolar o rebordo das ondas, de um escancarar de alturas, de um riso entrecortado pelo vento, de extremos de Melquíades, de obsessões de mercúrios, de jaguares, de octógonos quase impossíveis, de, de, de, de...

Ahhhhhhhhh! Cheira a maresia no loch!...

Entre Parêntesis

Pelo pequeno excerto que li aqui, fui ler o artigo aqui. Depois de muitos anos a lidar com questões relacionadas com os novos 'ismos' (tipo 'multi-culturalismo', 'inter-culturalismo' e 'pluri-culturalismo') com que uma certa consciência tentava precaver-se, cutucando 'com licença, com licença', da possível aculturação anunciada por outros ismos, no caso mais 'ão(s)' (tipo fluxos de migração, União Europeia e Globalização), foi-me um gosto ver a questão tão bem apresentada e em termos tão fáceis para o entendimento de qualquer um. E gostei do termo 'iliteracia cultural'. Já que temos de dar nomes socialmente aceitáveis às coisas, gostei particularmente deste. Até loch.

20061206

O aroma

Imagem - http://graphics.ucsd.edu/~henrik/papers/smoke/spsmoke.jpg
Como uma fluidez de incenso, quente e aveludado, um travo de sândalo, um traço de verbena, três gotas de citrino e um resplendor de rosa, o óleo exala. A atmosfera carrega-se, a sala contrai-se, as velas atordoam-se momentaneamente e todos os tons se transfiguram. A lareira crepita e por dentro dos ouvidos, como um mantra, ressoa surdamente um ronronar de esferas. Os ocres avermelham-se nas paredes em volta, como se nelas ganhassem vida frescos. Até se ouve o mar e o silêncio é mais cerrado, como se a noite estivesse à espreita. Uma taça enche-se e os gestos tornam-se num murmúrio do próprio ar. Borbulha um pensamento como lava de um vulcão, retida na caldeira. Uma máscara veneziana finge olhar-nos e pressente-se Nit. Devagar, os frescos das paredes revelam cores e formas, talvez uma qualquer espécie de escrita. De uma caixa de madeira retiro três espigas, algum sal, três moedas. Bebo de um só trago o vinho de uma pequena malga. Com a ponta dos dedos, ponho uma gota de óleo na minha testa. Acendo o incensário. Sopro suavemente sobre a água da taça. Sinto nos pés nus o calor da terra. Largo-me dos lastros e deixo de ter pés e braços. São oiros de areia, cintilações de rio e a dor inédita do que não pode ser cumprido. A barca partiu cedo demais. E o peso inédito chegou demasiado cedo. Mas danço de roda e toda eu sou cores e muitas vidas. Escorro pelas paredes e entorno-me pelas formas que parecem uma escrita e já não se podem ler. Lá fora, o trânsito precipita-se pelos semáforos. Acorda um livro de Borges no meu colo. Há um aroma bom na sala... Levanto-me para acender as luzes. Como anoiteceu tão cedo hoje!...

20061205

O frasco de perfume

frasco de perfume egípcio
Shhhh... como o génio bom dentro da lâmpada, o perfume adormeceu. Por um pequeno poro, escapa-se-lhe a respiração, numa cadência de aroma e ausência, difusa, fluida, encantatória. Impregna o pensamento, aguarela inesperadamente as nostalgias de tons lazúli, equívocos na sua bela e dolorosa mansidão. Desfio por dentro uma imensa fiada de pequenas contas de constantes agoras, com um trejeito do pescoço pretendo mudar o eixo do momento e sigo o fumo do cigarro sem o ver. (Ouves-me? Sim, sim, o ar lateja. Como ao peregrino, os Pirinéus acenam-te, ainda de longe, por entre muitas chuvas, e eu embrulho-me numa gota e também sigo.) Um som de saxofone arrasta-se. Arrefeceu. Só a respiração do perfume amorna o ar. Boa viagem. Até loch...

20061204

A perfumista

A rapariga do brinco de pérola, Vermeer
Vermeer... pois, Vermeer. Como de costume, quem olha entra no ambiente e surpreende, interrompe o movimento, provoca o gesto, o olhar, a palavra prestes a ser dita. Como a vida, como os dias da vida, sempre prontos, senão mesmo ávidos, a surpreender, interromper, alterar, obrigando a um constante reajustamento de rotas, quando não de rumos. Às vezes, conseguimos o olhar límpido de quem abraça qualquer horizonte, numa atracção infantil, ingénua ou temerária, pelo desconhecido. Doutras, a ruga na testa é inevitável e o sono esvai-se na apreensão de uma maturidade ainda não sábia. Doutras ainda, partimos do princípio - instável, mas princípio quand même - de que é essa farândola que nos leva, de momento em momento, pela trança de um qualquer eon de que fazemos - mais hipnótica do que conscientemente - parte, e tomamo-la como nossa, abraçando irremediável, inexorável, apaixonadamente o rodopio. De repente, lembro-me da dança dos dervixes Mevlevi... O que se mantem? ...o brinco de pérola, claro. Ou, talvez mais correctamente, a pérola e, espantosamente, um perfume. Até loch...

20061203

Uma impressão de sol

Regata em Argenteuil, Caude Monet
É Domingo. Um apetite de esplanada. E de sol, a talhar a frescura acinzentada deste Outono. Está uma tarde boa para escrever cartas, daquelas que se escreviam antigamente e que eu continuo a gostar de escrever, pelo gosto dos objectos e do ritual - o papel de textura macia mas encorpada, a caneta de tinta permanente de aparo médio, uma caligrafia gostosa, por legível e pelo primeiro prazer da escrita. Claro que, falando de cartas, tenho de lembrar-me das Cartas de Paris da Ana Cristina César, de Todas as Cartas de Amor do Àlvaro de Campos, da Lettera Amorosa do Eugénio de Andrade e, claro, da Carta de Amor do José Régio. Depois, lembro-me de todas essas cartas que se preservaram ao longo dos tempos e que têm permitido a recuperação de tanto bago do passado... registos de lente própria, é certo, mas, talvez por isso mesmo, com uma reconfortante janela a ligar-nos aos autores dos escritos. Estou convencida de que hoje são muitos os que desconhecem completamente esse prazer de escrever uma carta, assim com o ritual todo, até com o mata-borrão se possível for. Um prazer sereno que liga bem com esse outro de recontar por palavras e entre-letras, deixando a quem lê o tempo e o espaço para saborear e trans-viver. Pois... Até loch.

20061202

1139-1580-1640

Restaurámo-nos. Em 867 anos de história, fez ontem 366 que nos restaurámos. Talvez algo coxos, quiçá algo confusos... Mas restaurámos. Nas minhas divagações, gosto de pensar que restaurámos, principalmente, o nosso sentido enquanto nação e que as nossas manqueiras e dúbias hesitações se prendem com outros sentires, que, por acaso, de ‘sentir’ têm muito pouco. Mas não deixamos de ter alguma bizarria... Empolgamo-nos com uma série de acontecimentos e/ou debates, ou meramente com coisinhas que de algum modo nos atiçam esse sentimento de nação, de pátria ou mátria, e passamos, quase sem nos determos, pelas escassas oportunidades em que o calendário oficial o evoca. Celebramos um 10 de Junho como Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, talvez baralhados pelas ambiguidades das datas e das histórias da História e a data da Restauração fica, assim, como um retrato a óleos que o tempo desmaiou de alguém de quem nos disseram ter sido parente e que nos habituámos a ver apenas quando há que espanejar-lhe o pó naquele recanto da parede. No entanto, não deixo de pensar para com os meus botões, nestas conversas que tenho com a minha lusitaneidade, que por muito que falte para que te cumpras, é bom ser-te, Portugal! Até loch.